Melhor pecar por ser óbvio do que por ser omisso: palavras são as menores unidades de sentido autônomo da escrita. Sendo assim, nenhum escriba conseguirá ir muito longe
se não cultivar com elas, quase sempre por meio da leitura,
uma intimidade pelo menos razoável.
Isso significa – não apenas, mas em primeiro lugar –
saber o que elas significam em estado de dicionário. No meu
caso, não há maior inimigo da boa vontade que tenho para
a leitura de um texto do que descobrir que seu autor usa,
por exemplo, “literal” para o que é figurado e “latente” com o
sentido de “patente”.
Qual é o sentido de garantir a literalidade do que não tem
nenhuma? A rigor, “a viagem me deixou literalmente morto de
cansado” é uma afirmação que só poderia ser feita por um
autor defunto como Brás Cubas.
Problema semelhante tem uma frase como “Fulano me
ligou em prantos; a dor dele com a separação é latente”. Não,
não é. A dor do fulano talvez fosse latente antes do choro ao
telefone. Depois, é patente.
Alguns estudiosos argumentam que o uso, mesmo que
a princípio esteja equivocado, acabará por normalizar tudo
isso – se é que já não o fez. Todo idioma está fadado a mudar
de feição o tempo todo, com as palavras ganhando pouco a
pouco sutilezas que podem acabar por torná-las inteiramente
diferentes do que foram um dia. É verdade. No entanto, quando a confusão recai sobre pares de antônimos tão perfeitos,
acreditar que a ignorância venha a ser produtiva me parece
um excesso de otimismo.
(Sérgio Rodrigues. Literalmente latente, mas talvez não.
www1.folha.uol.com.br, 28.06.2023. Adaptado)