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Q1805150 Português
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Instintos e descivilização

Quão robusta é a ordem civilizada ocidental? A julgar pelo século XX, e mesmo sem levar em conta as duas guerras mundiais, talvez menos do que pareça. O padrão é conhecido: situações de conflito armado, cataclismos naturais e colapso econômico agudo – como, por exemplo, a hiperinflação alemã no início dos anos 1920; o blecaute que atingiu Nova York no outono de 1965; a guerra civil iugoslava da década de 1990; ou a passagem do furacão Katrina por New Orleans em meados de 2005 – revelam a fragilidade da fina superfície de civilidade e decoro sobre a qual assenta a nossa civilização. Sob impacto do abalo provocado por desastres como esses , o comportamento das pessoas sofre uma drástica mutação: enquanto alguns, em geral poucos, agem de forma solidária e até mesmo heroica, a maior parte da população atingida regride a um estado de violência e selvageria no qual a lógica do “salve-se quem puder” deságua na rápida escalada dos furtos, assaltos, saques, crimes, estupros e vandalismo. Quase que num piscar de olhos, o cordato cidadão civilizado – “casado, fútil, cotidiano e tributável” – se transforma em besta feroz, capaz das piores atrocidades. – Como entender o perturbador fenômeno? A interpretação usual propõe o modelo hobbesiano. O ser humano no fundo é um animal selvagem e terrível. Remova os sustentáculos elementares da ordem civilizada; dispa a camisa de força social; suspenda, ainda que brevemente, a vigilância e a ameaça de punição aos infratores do código legal, e, em pouco tempo, retrocedemos ao “estado natural hobbesiano” e à “guerra de todos contra todos”. O civilizado sem máscara da civilidade não é outro senão o animal humano em sua versão nativa, sem amarras nem recalques, como que de volta à selva e aos estágios da evolução em que as faculdades de inibição erguidas ao longo do processo civilizatório dormiam ainda no embrião da mente. Os episódios de regressão à barbárie seriam, em suma, o psiquismo arcaico do animal humano posto a nu. – O modelo hobbesiano poderia ter tomado como plausível, não fosse uma falha capital do argumento. Que a regressão à barbárie revele alguma coisa do nosso psiquismo arcaico não há por que duvidar. Mas o que vem à tona no caso não é o “estado de natureza” do mundo pré-civilizado ou o animal homem tal como a evolução o teria produzido – o que vem à tona é o bicho-homem descivilizado, ou seja, o civilizado que se vê repentinamente fora da jaula e apto a dar livre curso aos impulsos e instintos naturais tolhidos e asfixiados pela ordem civilizada. O descivilizado é o civilizado à solta: livres das amarras e restrições da vida comum mas portador de um psiquismo arcaico que foi pesadamente macerado e em larga medida deformado pela renúncia instintual imposta pelo processo civilizatório. A ferocidade que tomou conta dos conquistadores europeus no Novo Mundo e o surto de bestialidade fascista que varreu a Europa no século passado são exemplos extremos dessa realidade. O equívoco do modelo hobbesiano é confundir o homem descivilizado feito lobo do homem – ávido de desafogo e revide contra tudo e contra todos – com um suposto estado primitivo ou de pura natureza do animal. – “Você pode expelir a natureza com um varapau pontiagudo”, adverte Horácio, “mas ela sempre retornará.” A verdade do poeta, “nem o fogo, nem o ferro, nem o tempo devorador poderão abolir”. Mas à luz do exposto acima não seria talvez de todo impróprio emendar: a natureza expelida não sai ilesa – ela traz em seu retorno as marcas e as feridas da violenta expulsão.

Eduardo Giannetti
(Trópicos utópicos: uma perspectiva brasileira da crise
civilizatória. São Paulo: Cia das Letras, 2016)
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