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Q2091340 Português
Vozes ao ouvido

    Céu e mar estão competindo pelo azul nesta primavera carioca – um azul de tinteiro, de caneta Parker. Todas as manhãs, o calçadão Ipanema-Leblon transborda de gente contente por apenas estar ali, exercendo o seu direito de viver. É gente de vários estratos, idades, cores, línguas e de todos os estilos de caminhar ou correr. A exceção é a minoria que, indiferente ao azul, caminha atracada ao celular, o cenho franzido, discutindo coisas inadiáveis.
    Minoria na orla, mas maioria ao redor. No próprio calçadão, já vi um sem-teto em andrajos, sentado na escadaria do Leblon, falando ao celular. Sentei-me ao seu lado como quem não quer nada, tentando ouvir retalhos da conversa. Falava numa língua que eu não entendia, talvez português. Tudo bem, o importante era o homem falando ao celular – o meio era a mensagem.
    Há pouco, num shopping, um menino de quatro ou cinco anos levava ao ouvido um ursinho de pelúcia. Não sei se o ursinho tinha um celular embutido. Podia ser como o menino enxergava os adultos – todos com um objeto à orelha – e achasse que aquela era a maneira de usar o mundo.
    Não seria uma visão absurda. Descendo no Aeroporto Santos-Dumont na semana passada, eu era o único passageiro sem o telefone ao ouvido. Em vez disso, trazia na mão um objeto outrora tão popular quanto o celular: um livro. Por acaso, uma edição de bolso do clássico “Memórias de um Sargento de Milícias”.
      Instintivamente, repeti o gesto de todo mundo e levei o livro à orelha. E, então, deu-se o milagre. Escutei a voz dos personagens de Manuel Antonio de Almeida. Vozes vindas de um tempo remoto – mas que chegavam a mim com incrível nitidez.

(Ruy Castro. A arte de querer bem - Crônicas.
Rio de Janeiro: Estação Brasil, 2018. Excerto adaptado)

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