Enem digital retrata a desigualdade no Brasil

As grandes promessas do formato digital do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) são a agilidade na apuração dos resultados da prova objetiva, já que o gabarito do candidato será lançado na plataforma do INEP em tempo real, e o acesso a recursos de imagem mais dinâmicos, com cores e movimento. Segundo o instituto, nesse formato, a banca poderia se valer de questões com linguagem mais moderna, com mais uso da tecnologia, inclusive, com questões semelhantes a games.

A promessa é instigante e interessante, sem dúvidas, mas, a meu ver, apenas para os candidatos de cidades grandes que têm acesso fácil a aparelhos de celular, internet e demais tecnologias, podendo discriminar ainda mais os candidatos do interior do país e os oriundos das escolas públicas. O formato digital claramente favorecerá um grupo determinado de candidatos, já que a educação brasileira ainda não é digital e já que muitos brasileiros ainda estão bem distanciados dessa linguagem moderna e tecnológica. O MEC reconhece esse distanciamento, tanto que a amostragem do Enem no formato digital contará com 50 mil provas apenas, ou seja, cerca de 1% do total de inscritos para o concurso de 2019, que ultrapassa os 5 milhões. A aplicação ocorrerá apenas nas maiores capitais e, seguindo essa lógica, deverá abranger as áreas mais favorecidas do ponto de vista cultural e econômico. Como esperar resultados isentos e justos dessa amostragem? Como afirmar, sem hipocrisia, que a realidade da amostragem reflete as condições socioculturais e econômicas de todos os candidatos?

O IBGE apontou, em pesquisa recente, que, em grande parte dos domicílios brasileiros (mais de 90%), há, de fato, acesso a aparelhos de telefonia celular, entretanto, esses aparelhos são usados para receber e enviar mensagens apenas e, mesmo assim, quando estão perto de redes wi-fi e quando há dinheiro para créditos, ou seja, eles são usados de forma pontual e utilitária, não como ferramenta de estudo frequente. Além disso, mais da metade da população não têm computador em casa e, nas escolas públicas, ainda mais com os constantes cortes/contingenciamentos nos investimentos em educação, não se pode contar com o uso continuado dele. Às vezes, até há máquinas nas escolas, mas elas estão quebradas, sem manutenção, ou não há acesso a internet.

No Brasil de hoje, considerando a realidade das escolas e dos candidatos às vagas das universidades brasileiras como um todo, o Enem digital é como uma maratona em que estarão concorrendo pessoas que pouco ou nunca usaram tênis na vida, mas o receberão no dia da disputa (com sorte, no tamanho adequado) e pessoas que usaram tênis do seu tamanho a vida inteira, que já testaram vários modelos e tiveram acesso aos melhores solados. Os organizadores da maratona podem até afirmar que todos tiveram os mesmos recursos, já que todos estavam calçados no dia da corrida, mas todos nós sabemos quais vão ser os favoritos.

Para um concurso minimamente justo, todas as escolas do Brasil precisariam ter acesso a computadores e internet, pelo menos no ensino médio, para, depois, se implantar o Enem na forma digital. Pena que o meio ambiente ainda tenha de pagar a conta, por meio do papel das provas, do sucateamento do ensino público e das desigualdades socioeconômicas no Brasil. Infelizmente, em boa parte do nosso país, a tecnologia ainda se restringe a papel, quadro e giz. E o professor precisa fazer (e faz) milagres para ajudar seu aluno a ingressar em universidades públicas do país.

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