Questões de Concurso Militar PM-MG 2010 para Soldado - Técnico em Segurança Pública

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Q658293 Português

Cultura desbotada 

Daniel Piza

Antigamente havia uma noção razoavelmente disseminada de que ter “cultura geral” era importante, de que fazia parte dos requisitos da cidadania. Hoje, na suposta Era da Informação, é difícil imaginar compromisso mais fora de moda. Mesmo artistas, escritores e professores têm lacunas tremendas na formação cultural. Como se via na seção “Antologia pessoal” que este caderno mantinha, eles não leram muitos clássicos, dominam mal os conceitos filosóficos e científicos e se interessam pouco por história. Penso em diretores de cinema como Bergman e Fellini, no conhecimento amoroso que tinham de literatura, teatro, pintura e música, e comparo com os atuais, dos quais tenho conhecido alguns. A diferença de repertório é abissal e, mais importante, se manifesta nos filmes, hoje tão mais vazios.

Ou então leio Assunto Encerrado, de Ítalo Calvino, livro de 1980 que acaba de sair aqui (Companhia das Letras), e não consigo escapar da pergunta: não se faz mais gente assim? Calvino conversa com o leitor de modo erudito e sedutor ao mesmo tempo, sobre os mais diversos assuntos, e sempre com algo próprio a dizer. Ele critica, por exemplo, os que não entenderam a lição de Flaubert, pois a tomaram por um exercício linguístico em vez da experiência vital, e diz que isso resultou em “romances desbotados, como a água da lavagem dos pratos, em que nada a gordura de sentimentos requentados”. Como se vê, Calvino, que critica o formalismo de Barthes, o escapismo dos beatniks e elogia o cientista Galileu como um dos maiores prosadores da língua italiana, não é o pós-modernista que muitos de seus fãs querem nos fazer crer. Por sinal, gosto muito de sua ficção em O visconde partido ao meio e As cidades invisíveis, embora ele mesmo confesse uma opção pelos personagens “sem introspecção”; mas o ensaísta de Seis propostas para o próximo milênio e Por que ler os Clássicos merece ser mais lido do que nunca. São livros perfeitos para que se entenda que ter cultura não é acumular referências, e sim um processo orgânico no qual o prazer é fundamental, desde que não seja visto como mera reação emocional a estímulos de superfície. No Brasil é comum que pseudointelectuais torçam a vista para a palavra “prazer” aplicada a obras de arte e pensamento que eles julgam sacrossantas porque, na verdade, sua inteligência – ou de seus orientadores universitários – não as alcança.

Inteligência, claro, também parece tão fora de moda quanto usar chapéus. Programas de TV e revistas falam o tempo todo em “tipos de inteligência” ou em “inteligência emocional”, mas não conseguem disfarçar o sabor de vingança que sentem com esse desprestígio do raciocínio articulado, formado por leituras atentas. E desvincular inteligência e cultura é outra tática que só serve ao conservadorismo dos nossos tempos, ao consumismo sentimental que emana da mídia sem parar. Sim, há pessoas que leram muito e continuam burras, mas isso porque leem burramente... O difícil é querer que as pessoas realmente inteligentes não sejam curiosas por natureza, atraídas pelo conhecimento porque sabem que sem ele não há equipamento mental que se aprimore.

Essa overdose audiovisual, adversária da concentração sem a qual não existe formação – e toda formação exige alto grau de autodidatismo –, é apenas uma das causas do crescente desbotamento cultural da humanidade. A visão do intelectual como um sujeito ou insensível ou desajeitado, ainda que muitos intelectuais a confirmem, tem outras motivações históricas. Pode reparar que nos filmes de ação, sobretudo americanos, os vilões são sempre mais “sofisticados” que os heróis; se estes triunfam, é porque têm bom coração. Em parte isso tem a ver com os estereótipos sobre o nazismo, que provocam a pergunta banal sobre “como alguém que escuta Schubert pode matar milhões de pessoas” (escutar Schubert não é atestado moral); mas, na verdade, os antecede, como na cultura rousseauniana que as Américas adotaram.

Já passa da hora de entender que a aproximação a uma cultura mais voltairiana, “europeia” no melhor sentido (não dessa Europa deprimida e deprimente de Berlusconis e Sarkozys), faria bem ao mundo. Nesse extraordinário livro com os textos para a rádio BBC, Ouvintes Alemães (Zahar), Thomas Mann – outro exemplo de artista-intelectual em extinção – critica a mutilação da noção de Europa pelos nazistas: “Ela era o contrário da estreiteza provinciana, do egoísmo ilimitado, da brutalidade nacionalista e da falta de educação; significava liberdade, amplitude, espírito e bondade. ‘Europa’, isso era um patamar, um padrão cultural.” Mann demonstra ainda o que é cosmopolitismo ao criticar seu próprio país: “O nazismo é uma caricatura terrível de todas as fraquezas e loucuras da essência alemã, a ponto de corrermos o perigo de esquecer suas virtudes.” Não existem povos eleitos.

Aqui chegamos a outro motivo da desvalorização da “cultura geral”: a campanha contra o tal eurocentrismo, contra a civilização ocidental que, com seus “machos brancos” ou seus recalques vitorianos, teria calado as demais – campanha que, ironicamente, começou nas academias da Europa. Mas o Renascimento e o Iluminismo, assim como a arte moderna, são criações europeias que evidentemente a distinguem de outras civilizações – como a islâmica ou a chinesa, que tinham estado à sua frente em séculos anteriores. Familiarizar-se com todas elas é o caminho, mas ele implica não renegar a importância cultural da história polifônica que vai de Dante a Picasso e de Galileu a Einstein.

Há também a questão do trabalho cada vez mais especializado, que compartimenta os saberes em jargões e pretensões. Mas o melhor especialista é o que se beneficia do contato com outras áreas, e hoje felizmente se começa a ver que um olhar transversal ou multidisciplinar é indispensável. E uma cultura não vive apenas de especialistas. Basta lembrar jornalistas como Otto Lara Resende, Antonio Callado, Paulo Francis: todos liam muito sobre história e tinham a liberdade de se interessar por diversos temas. O grande inimigo, porém, é a noção de que vivemos num eterno presente, como se o reexame da tradição não fosse fundamental para as ideias e as artes. E tome uma “elite” cada vez mais antenada e cada vez mais inculta.

 
Segundo o 1º parágrafo do texto, a noção de que ter “cultura geral” é hoje, na Era da Informação:
Alternativas
Q658294 Português

Cultura desbotada 

Daniel Piza

Antigamente havia uma noção razoavelmente disseminada de que ter “cultura geral” era importante, de que fazia parte dos requisitos da cidadania. Hoje, na suposta Era da Informação, é difícil imaginar compromisso mais fora de moda. Mesmo artistas, escritores e professores têm lacunas tremendas na formação cultural. Como se via na seção “Antologia pessoal” que este caderno mantinha, eles não leram muitos clássicos, dominam mal os conceitos filosóficos e científicos e se interessam pouco por história. Penso em diretores de cinema como Bergman e Fellini, no conhecimento amoroso que tinham de literatura, teatro, pintura e música, e comparo com os atuais, dos quais tenho conhecido alguns. A diferença de repertório é abissal e, mais importante, se manifesta nos filmes, hoje tão mais vazios.

Ou então leio Assunto Encerrado, de Ítalo Calvino, livro de 1980 que acaba de sair aqui (Companhia das Letras), e não consigo escapar da pergunta: não se faz mais gente assim? Calvino conversa com o leitor de modo erudito e sedutor ao mesmo tempo, sobre os mais diversos assuntos, e sempre com algo próprio a dizer. Ele critica, por exemplo, os que não entenderam a lição de Flaubert, pois a tomaram por um exercício linguístico em vez da experiência vital, e diz que isso resultou em “romances desbotados, como a água da lavagem dos pratos, em que nada a gordura de sentimentos requentados”. Como se vê, Calvino, que critica o formalismo de Barthes, o escapismo dos beatniks e elogia o cientista Galileu como um dos maiores prosadores da língua italiana, não é o pós-modernista que muitos de seus fãs querem nos fazer crer. Por sinal, gosto muito de sua ficção em O visconde partido ao meio e As cidades invisíveis, embora ele mesmo confesse uma opção pelos personagens “sem introspecção”; mas o ensaísta de Seis propostas para o próximo milênio e Por que ler os Clássicos merece ser mais lido do que nunca. São livros perfeitos para que se entenda que ter cultura não é acumular referências, e sim um processo orgânico no qual o prazer é fundamental, desde que não seja visto como mera reação emocional a estímulos de superfície. No Brasil é comum que pseudointelectuais torçam a vista para a palavra “prazer” aplicada a obras de arte e pensamento que eles julgam sacrossantas porque, na verdade, sua inteligência – ou de seus orientadores universitários – não as alcança.

Inteligência, claro, também parece tão fora de moda quanto usar chapéus. Programas de TV e revistas falam o tempo todo em “tipos de inteligência” ou em “inteligência emocional”, mas não conseguem disfarçar o sabor de vingança que sentem com esse desprestígio do raciocínio articulado, formado por leituras atentas. E desvincular inteligência e cultura é outra tática que só serve ao conservadorismo dos nossos tempos, ao consumismo sentimental que emana da mídia sem parar. Sim, há pessoas que leram muito e continuam burras, mas isso porque leem burramente... O difícil é querer que as pessoas realmente inteligentes não sejam curiosas por natureza, atraídas pelo conhecimento porque sabem que sem ele não há equipamento mental que se aprimore.

Essa overdose audiovisual, adversária da concentração sem a qual não existe formação – e toda formação exige alto grau de autodidatismo –, é apenas uma das causas do crescente desbotamento cultural da humanidade. A visão do intelectual como um sujeito ou insensível ou desajeitado, ainda que muitos intelectuais a confirmem, tem outras motivações históricas. Pode reparar que nos filmes de ação, sobretudo americanos, os vilões são sempre mais “sofisticados” que os heróis; se estes triunfam, é porque têm bom coração. Em parte isso tem a ver com os estereótipos sobre o nazismo, que provocam a pergunta banal sobre “como alguém que escuta Schubert pode matar milhões de pessoas” (escutar Schubert não é atestado moral); mas, na verdade, os antecede, como na cultura rousseauniana que as Américas adotaram.

Já passa da hora de entender que a aproximação a uma cultura mais voltairiana, “europeia” no melhor sentido (não dessa Europa deprimida e deprimente de Berlusconis e Sarkozys), faria bem ao mundo. Nesse extraordinário livro com os textos para a rádio BBC, Ouvintes Alemães (Zahar), Thomas Mann – outro exemplo de artista-intelectual em extinção – critica a mutilação da noção de Europa pelos nazistas: “Ela era o contrário da estreiteza provinciana, do egoísmo ilimitado, da brutalidade nacionalista e da falta de educação; significava liberdade, amplitude, espírito e bondade. ‘Europa’, isso era um patamar, um padrão cultural.” Mann demonstra ainda o que é cosmopolitismo ao criticar seu próprio país: “O nazismo é uma caricatura terrível de todas as fraquezas e loucuras da essência alemã, a ponto de corrermos o perigo de esquecer suas virtudes.” Não existem povos eleitos.

Aqui chegamos a outro motivo da desvalorização da “cultura geral”: a campanha contra o tal eurocentrismo, contra a civilização ocidental que, com seus “machos brancos” ou seus recalques vitorianos, teria calado as demais – campanha que, ironicamente, começou nas academias da Europa. Mas o Renascimento e o Iluminismo, assim como a arte moderna, são criações europeias que evidentemente a distinguem de outras civilizações – como a islâmica ou a chinesa, que tinham estado à sua frente em séculos anteriores. Familiarizar-se com todas elas é o caminho, mas ele implica não renegar a importância cultural da história polifônica que vai de Dante a Picasso e de Galileu a Einstein.

Há também a questão do trabalho cada vez mais especializado, que compartimenta os saberes em jargões e pretensões. Mas o melhor especialista é o que se beneficia do contato com outras áreas, e hoje felizmente se começa a ver que um olhar transversal ou multidisciplinar é indispensável. E uma cultura não vive apenas de especialistas. Basta lembrar jornalistas como Otto Lara Resende, Antonio Callado, Paulo Francis: todos liam muito sobre história e tinham a liberdade de se interessar por diversos temas. O grande inimigo, porém, é a noção de que vivemos num eterno presente, como se o reexame da tradição não fosse fundamental para as ideias e as artes. E tome uma “elite” cada vez mais antenada e cada vez mais inculta.

 
Assinale a alternativa cuja palavra destacada possa ser substituída pela que está entre parênteses, sem que haja perda de sentido e procedendo às modificações necessárias:
Alternativas
Q658295 Português

Cultura desbotada 

Daniel Piza

Antigamente havia uma noção razoavelmente disseminada de que ter “cultura geral” era importante, de que fazia parte dos requisitos da cidadania. Hoje, na suposta Era da Informação, é difícil imaginar compromisso mais fora de moda. Mesmo artistas, escritores e professores têm lacunas tremendas na formação cultural. Como se via na seção “Antologia pessoal” que este caderno mantinha, eles não leram muitos clássicos, dominam mal os conceitos filosóficos e científicos e se interessam pouco por história. Penso em diretores de cinema como Bergman e Fellini, no conhecimento amoroso que tinham de literatura, teatro, pintura e música, e comparo com os atuais, dos quais tenho conhecido alguns. A diferença de repertório é abissal e, mais importante, se manifesta nos filmes, hoje tão mais vazios.

Ou então leio Assunto Encerrado, de Ítalo Calvino, livro de 1980 que acaba de sair aqui (Companhia das Letras), e não consigo escapar da pergunta: não se faz mais gente assim? Calvino conversa com o leitor de modo erudito e sedutor ao mesmo tempo, sobre os mais diversos assuntos, e sempre com algo próprio a dizer. Ele critica, por exemplo, os que não entenderam a lição de Flaubert, pois a tomaram por um exercício linguístico em vez da experiência vital, e diz que isso resultou em “romances desbotados, como a água da lavagem dos pratos, em que nada a gordura de sentimentos requentados”. Como se vê, Calvino, que critica o formalismo de Barthes, o escapismo dos beatniks e elogia o cientista Galileu como um dos maiores prosadores da língua italiana, não é o pós-modernista que muitos de seus fãs querem nos fazer crer. Por sinal, gosto muito de sua ficção em O visconde partido ao meio e As cidades invisíveis, embora ele mesmo confesse uma opção pelos personagens “sem introspecção”; mas o ensaísta de Seis propostas para o próximo milênio e Por que ler os Clássicos merece ser mais lido do que nunca. São livros perfeitos para que se entenda que ter cultura não é acumular referências, e sim um processo orgânico no qual o prazer é fundamental, desde que não seja visto como mera reação emocional a estímulos de superfície. No Brasil é comum que pseudointelectuais torçam a vista para a palavra “prazer” aplicada a obras de arte e pensamento que eles julgam sacrossantas porque, na verdade, sua inteligência – ou de seus orientadores universitários – não as alcança.

Inteligência, claro, também parece tão fora de moda quanto usar chapéus. Programas de TV e revistas falam o tempo todo em “tipos de inteligência” ou em “inteligência emocional”, mas não conseguem disfarçar o sabor de vingança que sentem com esse desprestígio do raciocínio articulado, formado por leituras atentas. E desvincular inteligência e cultura é outra tática que só serve ao conservadorismo dos nossos tempos, ao consumismo sentimental que emana da mídia sem parar. Sim, há pessoas que leram muito e continuam burras, mas isso porque leem burramente... O difícil é querer que as pessoas realmente inteligentes não sejam curiosas por natureza, atraídas pelo conhecimento porque sabem que sem ele não há equipamento mental que se aprimore.

Essa overdose audiovisual, adversária da concentração sem a qual não existe formação – e toda formação exige alto grau de autodidatismo –, é apenas uma das causas do crescente desbotamento cultural da humanidade. A visão do intelectual como um sujeito ou insensível ou desajeitado, ainda que muitos intelectuais a confirmem, tem outras motivações históricas. Pode reparar que nos filmes de ação, sobretudo americanos, os vilões são sempre mais “sofisticados” que os heróis; se estes triunfam, é porque têm bom coração. Em parte isso tem a ver com os estereótipos sobre o nazismo, que provocam a pergunta banal sobre “como alguém que escuta Schubert pode matar milhões de pessoas” (escutar Schubert não é atestado moral); mas, na verdade, os antecede, como na cultura rousseauniana que as Américas adotaram.

Já passa da hora de entender que a aproximação a uma cultura mais voltairiana, “europeia” no melhor sentido (não dessa Europa deprimida e deprimente de Berlusconis e Sarkozys), faria bem ao mundo. Nesse extraordinário livro com os textos para a rádio BBC, Ouvintes Alemães (Zahar), Thomas Mann – outro exemplo de artista-intelectual em extinção – critica a mutilação da noção de Europa pelos nazistas: “Ela era o contrário da estreiteza provinciana, do egoísmo ilimitado, da brutalidade nacionalista e da falta de educação; significava liberdade, amplitude, espírito e bondade. ‘Europa’, isso era um patamar, um padrão cultural.” Mann demonstra ainda o que é cosmopolitismo ao criticar seu próprio país: “O nazismo é uma caricatura terrível de todas as fraquezas e loucuras da essência alemã, a ponto de corrermos o perigo de esquecer suas virtudes.” Não existem povos eleitos.

Aqui chegamos a outro motivo da desvalorização da “cultura geral”: a campanha contra o tal eurocentrismo, contra a civilização ocidental que, com seus “machos brancos” ou seus recalques vitorianos, teria calado as demais – campanha que, ironicamente, começou nas academias da Europa. Mas o Renascimento e o Iluminismo, assim como a arte moderna, são criações europeias que evidentemente a distinguem de outras civilizações – como a islâmica ou a chinesa, que tinham estado à sua frente em séculos anteriores. Familiarizar-se com todas elas é o caminho, mas ele implica não renegar a importância cultural da história polifônica que vai de Dante a Picasso e de Galileu a Einstein.

Há também a questão do trabalho cada vez mais especializado, que compartimenta os saberes em jargões e pretensões. Mas o melhor especialista é o que se beneficia do contato com outras áreas, e hoje felizmente se começa a ver que um olhar transversal ou multidisciplinar é indispensável. E uma cultura não vive apenas de especialistas. Basta lembrar jornalistas como Otto Lara Resende, Antonio Callado, Paulo Francis: todos liam muito sobre história e tinham a liberdade de se interessar por diversos temas. O grande inimigo, porém, é a noção de que vivemos num eterno presente, como se o reexame da tradição não fosse fundamental para as ideias e as artes. E tome uma “elite” cada vez mais antenada e cada vez mais inculta.

 
De acordo com o último parágrafo do texto, pode-se afirmar:
Alternativas
Q658296 Português

Cultura desbotada 

Daniel Piza

Antigamente havia uma noção razoavelmente disseminada de que ter “cultura geral” era importante, de que fazia parte dos requisitos da cidadania. Hoje, na suposta Era da Informação, é difícil imaginar compromisso mais fora de moda. Mesmo artistas, escritores e professores têm lacunas tremendas na formação cultural. Como se via na seção “Antologia pessoal” que este caderno mantinha, eles não leram muitos clássicos, dominam mal os conceitos filosóficos e científicos e se interessam pouco por história. Penso em diretores de cinema como Bergman e Fellini, no conhecimento amoroso que tinham de literatura, teatro, pintura e música, e comparo com os atuais, dos quais tenho conhecido alguns. A diferença de repertório é abissal e, mais importante, se manifesta nos filmes, hoje tão mais vazios.

Ou então leio Assunto Encerrado, de Ítalo Calvino, livro de 1980 que acaba de sair aqui (Companhia das Letras), e não consigo escapar da pergunta: não se faz mais gente assim? Calvino conversa com o leitor de modo erudito e sedutor ao mesmo tempo, sobre os mais diversos assuntos, e sempre com algo próprio a dizer. Ele critica, por exemplo, os que não entenderam a lição de Flaubert, pois a tomaram por um exercício linguístico em vez da experiência vital, e diz que isso resultou em “romances desbotados, como a água da lavagem dos pratos, em que nada a gordura de sentimentos requentados”. Como se vê, Calvino, que critica o formalismo de Barthes, o escapismo dos beatniks e elogia o cientista Galileu como um dos maiores prosadores da língua italiana, não é o pós-modernista que muitos de seus fãs querem nos fazer crer. Por sinal, gosto muito de sua ficção em O visconde partido ao meio e As cidades invisíveis, embora ele mesmo confesse uma opção pelos personagens “sem introspecção”; mas o ensaísta de Seis propostas para o próximo milênio e Por que ler os Clássicos merece ser mais lido do que nunca. São livros perfeitos para que se entenda que ter cultura não é acumular referências, e sim um processo orgânico no qual o prazer é fundamental, desde que não seja visto como mera reação emocional a estímulos de superfície. No Brasil é comum que pseudointelectuais torçam a vista para a palavra “prazer” aplicada a obras de arte e pensamento que eles julgam sacrossantas porque, na verdade, sua inteligência – ou de seus orientadores universitários – não as alcança.

Inteligência, claro, também parece tão fora de moda quanto usar chapéus. Programas de TV e revistas falam o tempo todo em “tipos de inteligência” ou em “inteligência emocional”, mas não conseguem disfarçar o sabor de vingança que sentem com esse desprestígio do raciocínio articulado, formado por leituras atentas. E desvincular inteligência e cultura é outra tática que só serve ao conservadorismo dos nossos tempos, ao consumismo sentimental que emana da mídia sem parar. Sim, há pessoas que leram muito e continuam burras, mas isso porque leem burramente... O difícil é querer que as pessoas realmente inteligentes não sejam curiosas por natureza, atraídas pelo conhecimento porque sabem que sem ele não há equipamento mental que se aprimore.

Essa overdose audiovisual, adversária da concentração sem a qual não existe formação – e toda formação exige alto grau de autodidatismo –, é apenas uma das causas do crescente desbotamento cultural da humanidade. A visão do intelectual como um sujeito ou insensível ou desajeitado, ainda que muitos intelectuais a confirmem, tem outras motivações históricas. Pode reparar que nos filmes de ação, sobretudo americanos, os vilões são sempre mais “sofisticados” que os heróis; se estes triunfam, é porque têm bom coração. Em parte isso tem a ver com os estereótipos sobre o nazismo, que provocam a pergunta banal sobre “como alguém que escuta Schubert pode matar milhões de pessoas” (escutar Schubert não é atestado moral); mas, na verdade, os antecede, como na cultura rousseauniana que as Américas adotaram.

Já passa da hora de entender que a aproximação a uma cultura mais voltairiana, “europeia” no melhor sentido (não dessa Europa deprimida e deprimente de Berlusconis e Sarkozys), faria bem ao mundo. Nesse extraordinário livro com os textos para a rádio BBC, Ouvintes Alemães (Zahar), Thomas Mann – outro exemplo de artista-intelectual em extinção – critica a mutilação da noção de Europa pelos nazistas: “Ela era o contrário da estreiteza provinciana, do egoísmo ilimitado, da brutalidade nacionalista e da falta de educação; significava liberdade, amplitude, espírito e bondade. ‘Europa’, isso era um patamar, um padrão cultural.” Mann demonstra ainda o que é cosmopolitismo ao criticar seu próprio país: “O nazismo é uma caricatura terrível de todas as fraquezas e loucuras da essência alemã, a ponto de corrermos o perigo de esquecer suas virtudes.” Não existem povos eleitos.

Aqui chegamos a outro motivo da desvalorização da “cultura geral”: a campanha contra o tal eurocentrismo, contra a civilização ocidental que, com seus “machos brancos” ou seus recalques vitorianos, teria calado as demais – campanha que, ironicamente, começou nas academias da Europa. Mas o Renascimento e o Iluminismo, assim como a arte moderna, são criações europeias que evidentemente a distinguem de outras civilizações – como a islâmica ou a chinesa, que tinham estado à sua frente em séculos anteriores. Familiarizar-se com todas elas é o caminho, mas ele implica não renegar a importância cultural da história polifônica que vai de Dante a Picasso e de Galileu a Einstein.

Há também a questão do trabalho cada vez mais especializado, que compartimenta os saberes em jargões e pretensões. Mas o melhor especialista é o que se beneficia do contato com outras áreas, e hoje felizmente se começa a ver que um olhar transversal ou multidisciplinar é indispensável. E uma cultura não vive apenas de especialistas. Basta lembrar jornalistas como Otto Lara Resende, Antonio Callado, Paulo Francis: todos liam muito sobre história e tinham a liberdade de se interessar por diversos temas. O grande inimigo, porém, é a noção de que vivemos num eterno presente, como se o reexame da tradição não fosse fundamental para as ideias e as artes. E tome uma “elite” cada vez mais antenada e cada vez mais inculta.

 
Na seção “Antologia pessoal”, os artistas, escritores e professores possuem vultosas lacunas na formação cultural. Isso pode ser explicado pelo (a):
Alternativas
Q658297 Português

Cultura desbotada 

Daniel Piza

Antigamente havia uma noção razoavelmente disseminada de que ter “cultura geral” era importante, de que fazia parte dos requisitos da cidadania. Hoje, na suposta Era da Informação, é difícil imaginar compromisso mais fora de moda. Mesmo artistas, escritores e professores têm lacunas tremendas na formação cultural. Como se via na seção “Antologia pessoal” que este caderno mantinha, eles não leram muitos clássicos, dominam mal os conceitos filosóficos e científicos e se interessam pouco por história. Penso em diretores de cinema como Bergman e Fellini, no conhecimento amoroso que tinham de literatura, teatro, pintura e música, e comparo com os atuais, dos quais tenho conhecido alguns. A diferença de repertório é abissal e, mais importante, se manifesta nos filmes, hoje tão mais vazios.

Ou então leio Assunto Encerrado, de Ítalo Calvino, livro de 1980 que acaba de sair aqui (Companhia das Letras), e não consigo escapar da pergunta: não se faz mais gente assim? Calvino conversa com o leitor de modo erudito e sedutor ao mesmo tempo, sobre os mais diversos assuntos, e sempre com algo próprio a dizer. Ele critica, por exemplo, os que não entenderam a lição de Flaubert, pois a tomaram por um exercício linguístico em vez da experiência vital, e diz que isso resultou em “romances desbotados, como a água da lavagem dos pratos, em que nada a gordura de sentimentos requentados”. Como se vê, Calvino, que critica o formalismo de Barthes, o escapismo dos beatniks e elogia o cientista Galileu como um dos maiores prosadores da língua italiana, não é o pós-modernista que muitos de seus fãs querem nos fazer crer. Por sinal, gosto muito de sua ficção em O visconde partido ao meio e As cidades invisíveis, embora ele mesmo confesse uma opção pelos personagens “sem introspecção”; mas o ensaísta de Seis propostas para o próximo milênio e Por que ler os Clássicos merece ser mais lido do que nunca. São livros perfeitos para que se entenda que ter cultura não é acumular referências, e sim um processo orgânico no qual o prazer é fundamental, desde que não seja visto como mera reação emocional a estímulos de superfície. No Brasil é comum que pseudointelectuais torçam a vista para a palavra “prazer” aplicada a obras de arte e pensamento que eles julgam sacrossantas porque, na verdade, sua inteligência – ou de seus orientadores universitários – não as alcança.

Inteligência, claro, também parece tão fora de moda quanto usar chapéus. Programas de TV e revistas falam o tempo todo em “tipos de inteligência” ou em “inteligência emocional”, mas não conseguem disfarçar o sabor de vingança que sentem com esse desprestígio do raciocínio articulado, formado por leituras atentas. E desvincular inteligência e cultura é outra tática que só serve ao conservadorismo dos nossos tempos, ao consumismo sentimental que emana da mídia sem parar. Sim, há pessoas que leram muito e continuam burras, mas isso porque leem burramente... O difícil é querer que as pessoas realmente inteligentes não sejam curiosas por natureza, atraídas pelo conhecimento porque sabem que sem ele não há equipamento mental que se aprimore.

Essa overdose audiovisual, adversária da concentração sem a qual não existe formação – e toda formação exige alto grau de autodidatismo –, é apenas uma das causas do crescente desbotamento cultural da humanidade. A visão do intelectual como um sujeito ou insensível ou desajeitado, ainda que muitos intelectuais a confirmem, tem outras motivações históricas. Pode reparar que nos filmes de ação, sobretudo americanos, os vilões são sempre mais “sofisticados” que os heróis; se estes triunfam, é porque têm bom coração. Em parte isso tem a ver com os estereótipos sobre o nazismo, que provocam a pergunta banal sobre “como alguém que escuta Schubert pode matar milhões de pessoas” (escutar Schubert não é atestado moral); mas, na verdade, os antecede, como na cultura rousseauniana que as Américas adotaram.

Já passa da hora de entender que a aproximação a uma cultura mais voltairiana, “europeia” no melhor sentido (não dessa Europa deprimida e deprimente de Berlusconis e Sarkozys), faria bem ao mundo. Nesse extraordinário livro com os textos para a rádio BBC, Ouvintes Alemães (Zahar), Thomas Mann – outro exemplo de artista-intelectual em extinção – critica a mutilação da noção de Europa pelos nazistas: “Ela era o contrário da estreiteza provinciana, do egoísmo ilimitado, da brutalidade nacionalista e da falta de educação; significava liberdade, amplitude, espírito e bondade. ‘Europa’, isso era um patamar, um padrão cultural.” Mann demonstra ainda o que é cosmopolitismo ao criticar seu próprio país: “O nazismo é uma caricatura terrível de todas as fraquezas e loucuras da essência alemã, a ponto de corrermos o perigo de esquecer suas virtudes.” Não existem povos eleitos.

Aqui chegamos a outro motivo da desvalorização da “cultura geral”: a campanha contra o tal eurocentrismo, contra a civilização ocidental que, com seus “machos brancos” ou seus recalques vitorianos, teria calado as demais – campanha que, ironicamente, começou nas academias da Europa. Mas o Renascimento e o Iluminismo, assim como a arte moderna, são criações europeias que evidentemente a distinguem de outras civilizações – como a islâmica ou a chinesa, que tinham estado à sua frente em séculos anteriores. Familiarizar-se com todas elas é o caminho, mas ele implica não renegar a importância cultural da história polifônica que vai de Dante a Picasso e de Galileu a Einstein.

Há também a questão do trabalho cada vez mais especializado, que compartimenta os saberes em jargões e pretensões. Mas o melhor especialista é o que se beneficia do contato com outras áreas, e hoje felizmente se começa a ver que um olhar transversal ou multidisciplinar é indispensável. E uma cultura não vive apenas de especialistas. Basta lembrar jornalistas como Otto Lara Resende, Antonio Callado, Paulo Francis: todos liam muito sobre história e tinham a liberdade de se interessar por diversos temas. O grande inimigo, porém, é a noção de que vivemos num eterno presente, como se o reexame da tradição não fosse fundamental para as ideias e as artes. E tome uma “elite” cada vez mais antenada e cada vez mais inculta.

 
“A noção de que vivemos num eterno presente” é considerada, pelo autor, uma inimiga. Um motivo, segundo Daniel Piza, para tal fato está corretamente explicado na opção:
Alternativas
Respostas
1: B
2: C
3: D
4: B
5: C