Naquele fundo de sacristia, escondida ou arredada
como se fora uma imagem quebrada cuja ausência do
altar o decoro do culto exige, encontrei a cadeirinha azul,
forrada de damasco cor de ouro velho. Na frente e no
fundo, dois pequenos painéis pintados em madeira com
traços finos e expressivos. Representava cada qual uma
dama do antigo regime. A da frente, vestida de seda
branca, contrastava a alvura do vestido e o tênue colorido
da pele com o negrume dos cabelos repuxados em trunfa
alta e o vivo carmim dos lábios; tinha um ar desdenhoso e
fatigado de fidalga elegante para quem os requintes da
etiqueta e galanteios dos salões são já coisas velhas e
comezinhas. A outra, mais antiga ainda, trazia as melenas
em cachos artísticos sobre as fontes e as pequeninas
orelhas; um leque de marfim semiaberto comprimia-lhe os
lábios rebeldes que queriam expandir-se num riso franco;
os olhos grandes e negros tinham mais paixão e mais
alma. Esta contemporânea de La Valliêre, que o artista
anônimo perpetuou na madeira da cadeirinha, não se
parecia muito com aquela meiga vítima da régia
concupiscência: ao contrário, um certo arregaçado das
narinas, uma ponta de ironia que lhe voejava na comissura
da boca breve e enérgica — tudo isso mostrava estar ali
naquele painel: representada uma mulher meridional,
ardente e vivaz, pronta ao amor apaixonado ou à luta
odienta. [...]
Sem querer acrescentar mais ao já dito sobre as
damas, perguntava de mim para mim se o pintor do século
passado, ao traçar com tanta correção e finura os dois
retratos de mulher, transmitindo-lhes em cada cabelo do
pincel uma chama de vida, não estaria realmente diante
de dois espécimens raros de filhas de Eva, de duas
heroínas que por serem de comédia ou de ópera nem por
isso deixam de o ser da vida real?
— Quem sabe se a Fontagens e a Montespan?
— Qual! Impossível!
— Impossível, não! Porque a cadeirinha podia
perfeitamente ter sido pintada em França e era até mais
natural crê-lo; porquanto a finura das tintas e a correção
dos traços pareciam indicar um artista das grandes cortes
da época.
E assim, em tais conjeturas, pus-me a examinar
mais detidamente o velho e delicado veículo, relíquia do
século passado, sobrevivendo não sei por que na sacristia
da igreja de um modesto arraial mineiro. Os varais,
conformes à moda bizarra do tempo, terminavam em
cabeças de dragões com as faces abertas e sanguentas e
os olhos com uma expressão de ferocidade estúpida. O
forro de cima formava um pequeno docel de torno
senhorial; e o ouro velho do damasco quê alcatifava
também os dois assentos fronteiriços não tem igual nas
casas de modas de agora.
Qual das matronas de Ouro Preto, ou das cidades
que como esta alcançam mais de um século, não terá
visto, ou pelo menos ouvido falar com insistência, quando
meninas, nas cadeirinhas conduzidas por lacaios de libre,
onde as moçoilas e as damas de outrora se faziam
delicadamente transportar?
Quem não fará reviver na imaginação uma das
cenas galantes da cortesia antiga em que, através da
portinhola cortada de caprichosos lavores de talha,
passava um rostozinho enrubescido e dois olhos de
veludo a pousarem de leve sobre o cavalheiro de espadim
com quem a misteriosa dama cruzava na passagem?
Também, ó pobre cadeirinha, lá terias o teu dia de
caiporismo: havia de chegar a hora em que, em vez dos
saltos vermelhos de um sapatinho de cetim calçando um
pezinho delicado, teu fundo fosse calcado pela chanca
esparramada de alguma cetácea obesa e tabaquista. [...]
Nem foram desses os teus piores dias, ó saudosa
cadeirinha! Já pelos anos de tua velhice, quando, como
agora, sobrevivias ao teu belo tempo passado, quando,
perdidos teus antigos donos, alguém se lembrou de
carregar-te para a sacristia da igreja, não te davam outro
serviço que não o de transportares, como esquife,
cadáveres de anjinhos pobres ao cemitério, ou semelhante
às macas das ambulâncias militares, o de conduzires ao
hospital feridos ou enfermos desvalidos.
Que cruel vingança não toma aquela época
longínqua por lhe teres sobrevivido! Coisa inteiramente
fora da moda, o contraste flagrante que formas com o
mundo circundante é uma prova evidente de tua próxima
eliminação, 6 velha cadeirinha dos tempos mortos!
Mas é assim a vida: as espécies, como os
indivíduos, vão desaparecendo ou se transformando em
outras espécies e em outros indivíduos mais perfeitos,
mais complicados, mais aptos para o meio atual, porém
muito menos grandiosos que os passados. Que figura faria
o elefante de hoje, resto exótico da fauna terciária, ao lado
do megatério? A de um filhote deste. E no entanto, bem
cedo, talvez nos nossos dias, desaparecerá o elefante, por
já estar em desarmonia com a fauna atual, por constituir já
aquele doloroso contraste de que falamos acima e que é o
primeiro sintoma da próxima eliminação do grande
paquiderme. Parece que o progresso marcha para a
dispersão, a desagregação e o formigamento. Um grande
organismo tomba e se decompõe e vai formar uma
inumerável quantidade de seres ávidos de vida. A morte,
essa grande ilusão humana, é o início daquela dispersão,
ou antes a fonte de muitas vidas. E que grande
consoladora!
Lembra-me ter visto, há tempos, um octogenário
de passo trôpego e cara rapada passeando em trajes
domingueiros a pedir uma carícia ao sol. Dirigilhe a
palavra e detivemo-nos largo espaço a falar dos costumes,
das coisas e dos homens de outro tempo. Nisso
surpreendeu-nos um magote de garotos que escaramuçou
o velho a vaias. O pobre do ancião já ia seguindo seu
caminho quando o abordou a meninada, não apressou o
passo nem perdeu aquela serenidade de quem já tinha
domado as fúrias das paixões com o vencer os anos. Vi-o
ainda voltar-se com o rosto engelhado numa risada
tristíssima, a comprida japona abanando ao vento e dizer,
em tom de convicção profunda: “Ai dos velhos, se não
“fosse a morte!” Parecia uma banalidade, mas não era
senão o apelo supremo, a prece fervente que esse exilado
fazia a Deus para que pusesse termo ao seu exílio, onde
ele estava fora dos seus amigos, dos seus costumes, de
tudo quanto lhe podia falar ao coração. [...].
Por que, pois, a pobre cadeirinha, esse mimo de
graça, esse traste casquilho, essa fiel companheira da
vida de sociedade, da vida palaciana, da vida de corte com seus apuros e suas intrigas, suas vinganças
pequeninas, seus amores, todavia sobrevive e por que a
não pôs em pedaços um braço robusto empunhando um
machado benfazejo? Ao menos evitaria esse
dolorosíssimo ridículo, essa exposição indecorosa de
nudez de velha!
Já tiveste dias de glória, cadeirinha de outros
tempos! Pois bem: desaparece agora, vai ao fogo e pede
que te reduza a cinzas! É mil vezes preferível a essa
decadência em que te achas e até mesmo à hipótese mais
lisonjeira de te perpetuarem num museu. Deves preferir a
paz do aniquilamento à glória de figurares numa coleção
de objetos antigos, exposta à curiosidade dos papalvos e
às lorpas considerações dos burgueses, mofada e
tristonha. Morre, desaparece, que talvez — por que não?
— a tua dona mais gentil, aquela para quem tuas alcatifas
tinham mais delicada carícia ao receber-lhe o corpinho
mimoso, aquela que recendia um perfume longínquo de
roseira do Chiraz te conduza para alguma região ideal,
dourada e fugidia, inacessível aos homens... [...].
ARINOS, Affonso. Pelo Sertão. Minas Gerais: Itatiaia, 1981.
(Texto adaptado)