Texto 1:
Palavras, palavras...
Ando descobrindo coisas óbvias acerca do
uso da língua, do idioma falado. Uma delas — que me
surpreendeu — é que falar é sempre improvisar. E eu até
hoje não me tinha dado conta disto! Não sei se você, leitor,
já percebeu, mas a verdade é que, quando você pergunta à
empregada o que ela sugere para o almoço, sua resposta é
um improviso, e tanto ela pode dizer: “por que não se faz
a costela de porco?” ou... “pode ser costeleta” ou... “faz
tempo que o senhor não come costeleta”... Enfim, o que
importa aqui é mostrar que a frase não está pronta, que ela
é apenas uma das possibilidades de formular do falante.
Certamente, há os lugares-comuns, frases já prontas que
usamos automaticamente, e que foram inventadas por
alguém e tão bem inventadas que todo mundo passou a
repeti-las.
E disso passei a outro aspecto do uso do idioma:
a palavra, a força que têm certas palavras. Por exemplo,
a palavra negro. Pelas implicações raciais, pela carga de
história e preconceito que pesam sobre ela, tornou-se
explosiva. Para certas pessoas, referir-se a alguém como
negro é quase uma ofensa, quando devia ser natural. Já
um conhecido meu, que é negro e justamente revoltado
com os preconceitos que experimentou ao longo da vida,
radicalizou. “Lá em casa — afirmou ele — ensinei os
meninos a não dizem ‘a coisa preta’; lá se diz ‘a coisa tá
branca’”. Não pude deixar de rir.
— Você tá de gozação.
— Não é gozação, não. Temos que acabar com
essas expressões que são fruto da discriminação.
Lembrei então de outras palavras e expressões
que poderiam gerar reações semelhantes. A palavra
amarelo muitas vezes é usada de maneira que poderia
ofender a chineses e japoneses, se é que se consideram
mesmo amarelos: “o cara amarelou”, “tá amarelo de
fome”. Quando menino, ouvia as pessoas mais velhas
dizerem: “desculpa de amarelo é comer terra”, frase que
nunca entendi direito mas que, sem dúvida, está longe de
ser um elogio aos ditos amarelos.
Augusto Meyer, em seu livro Os pêssegos verdes,
informa como a cor amarela, que no Oriente simbolizou a
Casa Imperial e, para o poeta grego Píndaro, expressava
o esplendor do sol, entrou em desprestígio com Dante,
para quem o amarelo era a cor de uma das três caras de
Satanás. De lá pra cá, o amarelo tornou-se um estigma
para judeus e até para prostitutas e leprosos. Isto sem falar
em expressões depreciativas como “imprensa amarela”,
“sorriso amarelo” e, pior, “ameaça amarela”, que esteve
em voga durante a segunda guerra mundial, quando os
japoneses se aliaram a Hitler.
Como se vê, certas palavras podem gozar de
momentos áureos ou períodos negros (com perdão da
palavra) e até mesmo adquirirem significado ironicamente
contrário ao seu sentido original. Este foi o caso de Pinel,
sobrenome de um famoso psiquiatra francês e nome de um
pronto-socorro psiquiátrico do Rio. Durante os anos 70, os
jovens drogados da zona sul da cidade, quando entravam
em surto, eram levados para lá. Em consequência disso, na
gíria desses jovens, o nome do médico passou a significar
a doença mental que ele se dedicara a tratar.
— Fulano está pinel.
Ou seja, está surtado ou pirou, enlouqueceu. De
gíria de um pequeno grupo, a expressão passou à imprensa
e à televisão. Nos especiais televisivos da época, que
falavam da juventude, era frequente ouvir-se a palavra
pinel usada como sinônimo de loucura. Chegou mesmo a
ser dicionarizada como tal. Aí, os descendentes do doutor
Philippe Pinel, indignados, protestaram.
(GULLAR, Ferreira. Coleção Melhores Crônicas.
São Paulo: Global, 2004. p.164-166.)