Texto 01
Bibliotecas
Márcio Tavares D'Amaral
A biblioteca de Alexandria foi a maior da
Antiguidade. Fundada no século IlI a.C., teve a missão de
engaiolar ao menos um exemplar de todos os livros
escritos no mundo. Setecentos mil rolos e papiros foram
protegidos pelas suas paredes! Estava aberta a todas as
áreas da poderosa inquietação que nos move a ser e
saber mais do que temos sabido e sido. Uma fonte, uma
torrente, uma gula de inundar desertos. A biblioteca de
Alexandria existiu de verdade. E, tendo sido destruída, é
também, até hoje, para quem gosta de livros, um mito. A
mãe das bibliotecas. A casa dos sábios.
Alguns dos nossos fundadores trabalharam nela e
inventaram uma parte da nossa cultura, a que, dizem hoje
alguns, perdeu sua força e vai para as gôndolas de
perfumaria no megamercado do mundo. Custa crer. Se ela
não tivesse sido incendiada, bastaria ir lá, intoxicar-se com
o ar de séculos de poeira acumulada, respirar a História e
desmentir essa profecia. Mas ela de fato foi incendiada.
Setecentos mil livros! Se parássemos um pouco nossas
correrias, poderíamos olhar com veneração para essa
fogueira. Nela ardem também outras bibliotecas,
aposentam-se da vida outros livros. É triste. E tem um
sabor de símbolo nessa época voraz de informação. A
época do Kindle, biblioteca portátil.
Pensem que Ptolomeu, o grande astrônomo que
defendeu a ideia de que a Terra era o centro do universo,
trabalhou lá. Como, antes dele, Aristarco de Sarnas, que,
ao contrário, postulava o sol como centro, e a Terra como
humilde circuladora em torno da sua estrela. Não lhe
deram ouvidos. Mas seu livro ficou lá, mudamente dando
testemunho da verdade. Foi copiado. Escapou assim do
incêndio. E cimentou parte do mundo que é o nosso. E
Arquimedes? Também ele trabalhou ali. Pode ter
encontrado entre suas prateleiras e armários a ideia
extraordinária de com uma alavanca e um apoio mover o
mundo. A biblioteca de Alexandria era uma alavanca. E um
apoio. Moveu o mundo antigo, pai e mãe do nosso. E
Euclides, cujo nome por vinte e três séculos, até o nosso
XIX, foi sinônimo de matemática. Euclides também. Como
Galena, que frequentou aquelas salas e foi longamente o
mestre da medicina. A mim encanta Hipatia. Foi diretora
da Biblioteca, astrônoma e matemática. Mas, sobretudo,
até o século XX, a única filósofa registrada na nossa
corporação. A única mulher filósofa. É incrível. A filosofia é
mulher. A solitária Hipatia aponta um dedo acusador para
a nossa cultura de machos. Era pagã. Foi morta por
cristãos durante uma sublevação. Também isso fala mal
de nós. Devíamos pensar um pouco nessas coisas no
tempo em que as bibliotecas, dizem, vão em breve se tornar obsoletas. Cabem num Kindle.
O incêndio da biblioteca de Alexandria é de autoria
incerta. Já foi atribuído a Júlio César, e estaria envolvido
na história de amor do cônsul romano com a rainha
Cleópatra do Egito. Amor e poder, incêndio na certa. A
história mais cenográfica é a da queima ordenada pelo
governador do Egito logo depois da sua conquista pelo
califa Omar. Teria sido em 646. E não um incêndio
qualquer: os papiros e pergaminhos teriam sido levados
para as caldeiras que esquentavam os banhos públicos e
queimados lentamente, esquentando a água, dias a fio.
Não tanto o incêndio do prédio: a biblioteca ela mesma, os
livros, combustível para a água quente dos alexandrinos.
Que imagem! Que sofrimento. Mas o mais provável é que
o imperador romano a tenha incendiado de fato 50 anos
antes, em 595, como ato de guerra. Guerras, destinos
mortais de bibliotecas? Em todo caso, feridas no corpo da
nossa história. A Inquisição e o Terceiro Reich também
queimaram algumas. A leitura é a nossa arma de combate.
Bibliotecas não apenas guardam. Também geram.
Quando, no século IX, Carlos Magno quis restaurar o
Império do Ocidente destruído pelos germânicos, precisou
de livros. A Europa conservara sua memória nas grandes
bibliotecas dos mosteiros da Irlanda. Vieram, os monges e
os livros. E a Europa começou de novo. E as
universidades foram criadas - em torno de bibliotecas. A
Universidade de Paris depois se chamou Sorbonne porque
o colégio criado por Robert de Sorbon para moradia e
lugar de trabalho para estudantes pobres tinha muitos
livros. Os livros criaram a Sorbonne. Era assim, então.
Hoje bibliotecas não merecem mais a admiração
quase religiosa dos tempos passados. A nossa cultura
transforma-se rapidamente numa experiência de
estocagem e uso de informação. Arquivamento e
consumo. Temos o Kindle. O Kindle é, que não haja a
menor dúvida, uma das maravilhas da nossa civilização
tecnológica. Cabem nele a biblioteca de Alexandria e as
dos mosteiros irlandeses, talvez. É verdade. Mas não tem
maciez. Não cheira. Não se desfaz, como os livros velhos.
Não vive.
Quem tiver uns livros em casa, guarde-os. Se você
ainda ama os livros, de fato, conserve-se. São pedaços de
História. Podem desaparecer. Podem também salvar.
(Jornal O Globo, Sábado 5.9.2015. Texto adaptado)