Leia o trecho do romance Iracema, de José de Alencar, para
responder à questão.
Além, muito além daquela serra, que ainda azula no horizonte, nasceu Iracema.
Iracema, a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu
talhe de palmeira.
O favo da jati não era doce como seu sorriso; nem a baunilha recendia no bosque como seu hálito perfumado.
Mais rápida que a corça selvagem, a morena virgem corria o sertão e as matas do Ipu, onde campeava sua guerreira
tribo, da grande nação tabajara. O pé grácil e nu, mal roçando, alisava apenas a verde pelúcia que vestia a terra com as
primeiras águas.
Um dia, ao pino do Sol, ela repousava em um claro da
floresta. Banhava-lhe o corpo a sombra da oiticica, mais fresca do que o orvalho da noite. Os ramos da acácia silvestre
esparziam flores sobre os úmidos cabelos. Escondidos na
folhagem os pássaros ameigavam o canto.
Iracema saiu do banho: o aljôfar d’água ainda a roreja,
como à doce mangaba que corou em manhã de chuva. Enquanto repousa, empluma das penas do gará as flechas de
seu arco, e concerta com o sabiá da mata, pousado no galho
próximo, o canto agreste.
A graciosa ará, sua companheira e amiga, brinca junto
dela. Às vezes sobe aos ramos da árvore e de lá chama a
virgem pelo nome; outras remexe o uru de palha matizada,
onde traz a selvagem seus perfumes, os alvos fios do crautá,
as agulhas da juçara com que tece a renda, e as tintas de que
matiza o algodão.
Rumor suspeito quebra a doce harmonia da sesta. Ergue a virgem os olhos, que o sol não deslumbra; sua vista
perturba-se.
Diante dela e todo a contemplá-la está um guerreiro estranho, se é guerreiro e não algum mau espírito da floresta.
Tem nas faces o branco das areias que bordam o mar; nos
olhos o azul triste das águas profundas. Ignotas armas e tecidos ignotos cobrem-lhe o corpo.
Foi rápido, como o olhar, o gesto de Iracema. A flecha
embebida no arco partiu. Gotas de sangue borbulham na
face do desconhecido.
De primeiro ímpeto, a mão lesta caiu sobre a cruz da espada; mas logo sorriu. O moço guerreiro aprendeu na religião
de sua mãe, onde a mulher é símbolo de ternura e amor.
Sofreu mais d’alma que da ferida.
O sentimento que ele pôs nos olhos e no rosto, não o sei
eu. Porém a virgem lançou de si o arco e a uiraçaba, e correu
para o guerreiro, sentida da mágoa que causara.
A mão que rápida ferira, estancou mais rápida e compassiva o sangue que gotejava. Depois Iracema quebrou a flecha
homicida: deu a haste ao desconhecido, guardando consigo
a ponta farpada.
(Iracema, 2006.)