O taxista de cabelo branco
Dos taxistas aqui da esquina, só sei o nome do Adão. Na primeira vez que peguei seu táxi, ele apontou para fora da janela,
disse “olha só, as goiabeiras da Henrique Schaumann tão carregadas” e, quando reparei nas goiabas que brotavam no canteiro
central da avenida, já éramos amigos de infância. Adão conhece todas as árvores frutíferas espalhadas pela cidade e, sempre
que me leva a algum lugar, faz um relatório detalhado de seu esparso pomar: conta que as jacas do parque da Luz tão quase
caindo em cima dos carros, que a mangueira da avenida Pacaembu tá atraindo um bando de maritacas, que houve um bafafá
na zona leste porque a prefeitura ameaçou cortar um abacateiro, lá na rua Padre Adelino.
Muito diferente do Adão é o taxista de cabelo branco. Seu nome não sei e admito que, até a última quinta, não estava
interessado em saber. Havia, entre mim e o taxista de cabelo branco, um certo desconforto. Veja, não sou homem de alimentar
inimizades e costumo preferir o acordo ao conflito, mas em algumas ocasiões não há consenso possível: antes da última Copa
do Mundo eu reclamei do Dunga, o sujeito resolveu apoiar o obtuso treinador e, irritado, fez um longo discurso defendendo a
supremacia da prudência, da ordem e da disciplina sobre a ousadia, a criatividade e a beleza – como eu poderia ficar calado?
Estou longe de ser um aventureiro. Sou caseiro e covarde como um cocker-spaniel. Talvez por isso mesmo, por procurar
no mundo o que não trago em mim, é que prefira o gol de bicicleta, o “Soneto da fidelidade” e um solo de chaleira de Hermeto
Pascoal à seleção alemã, aos enxadristas russos, à ponte Rio-Niterói. O taxista de cabelo branco, contudo, não pensa como eu.
Quando tentei convencê-lo de que o futebol não tinha nenhum sentido senão pela beleza, ele riu, e, como todos os arautos da
mediocridade, mencionou 82 com desprezo. Eu afirmei que preferia a derrota de 82 à vitória de 94, e foi aí que a conversa
melou de vez; ele bufou, ligou o rádio e aquele ruído instalou-se entre nós, definitivamente.
Não, não definitivamente. Na última quinta, eu e o taxista de cabelo branco estávamos na Vinte e Três de Maio, a caminho
de Congonhas, imersos em nossa silenciosa discórdia, quando tocou meu celular. Durante os últimos meses, eu e minha mulher
vínhamos procurando um lugar para morar. Depois de um sem-número de tristes visitas a quintais azulejados, pesadelos de
cerejeira & esquadrias de alumínio, finalmente encontramos uma linda casa com jardim, uma mesa à sombra duma jabuticabeira,
onde vislumbramos cafés da manhã que entrariam pela tarde, almoços que entrariam pela noite e os filhos, claro, que em breve
entrarão em nossas vidas. Fizemos uma proposta um pouco abaixo do que o proprietário estava pedindo, ele ficou de pensar,
sumiu e, quando já estávamos quase desistindo de receber uma resposta, eis que meu celular começa a tremer e gritar, exibindo
o nome do homem na telinha, pequeno oráculo de cristal líquido. Atendi, nervoso. Ele disse que topava, fechamos negócio.
Quando desliguei, já estávamos no aeroporto, o carro encostando no meio-fio, com o pisca-alerta ligado. “Comprei uma
casa!”, eu disse, exultante, ao motorista. “Vou pegar dinheiro do banco, vou pagar juros por muitos e muitos anos, mas terei
uma casa!”. O taxista de cabelo branco me sorriu, genuinamente feliz. “Não tem problema pagar pro banco. Importante é que
a casa é sua. É um grande passo na vida.”
Sorri de volta, entendendo e compartilhando a alegria de meu ex-antípoda: endividar-se para garantir um teto e um jardim
era o meio caminho entre nós dois, um ato contendo a mesma medida de ousadia e prudência. Apertamos as mãos e fui para
o Rio de Janeiro, contente com meu futuro e acreditando na concórdia universal.
(À maneira de Braga: O taxista de cabelo branco, por Antonio Prata. Literatura. Equipe IMS. Em: junho de 2011.)