TENTAÇÃO
(1º§) Ela estava com soluço. E como se não bastasse a
claridade das duas horas, ela era ruiva. Na rua vazia,
vibravam as pedras de calor − a cabeça da menina
flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela
suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando
inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse
seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de
momento a momento, abalando o queixo que se apoiava
conformado na mão.
(2º§) Que fazer de uma menina ruiva com soluço?
Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento.
Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de
morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que
importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer
insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela
estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas
horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora,
com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já
habituado, apertando-a contra os joelhos. Foi quando se
aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão
em Grajaú.
(3º§) A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo
quente da esquina acompanhando uma senhora, e
encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e
miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset
ruivo. Lá vinha ele trotando, à frente da sua dona,
arrastando o seu comprimento. Desprevenido,
acostumado, cachorro. A menina abriu os olhos
pasmados. Suavemente avisado, o cachorro estacou
diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
(4º§) Entre tantos seres que estão prontos para se
tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que
viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia
suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos,
fascinada, séria.
(5º§) Quanto tempo se passava? Um grande soluço
sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também
ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo. Os
pelos de ambos eram curtos, vermelhos. Que foi que se
disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se
comunicaram rapidamente, pois não havia tempo.
Sabe-se também que sem falar eles se pediam.
Pediam-se, com urgência, com encabulamento,
surpreendidos.
(6º§) No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto
sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no
meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães
maiores, de tantos esgotos secos − lá estava uma
menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se
fitavam profundos, entregues, ausentes do Grajaú. Mais
um instante e o suspenso sonho se quebraria, talvez
cedendo à gravidade com que se pediam.
(7º§) Mas ambos eram comprometidos. Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se
abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua
natureza aprisionada. A dona esperava impaciente sob o
guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da
menina e saiu sonâmbulo.
(8º§) Ela ficou espantada, com o acontecimento nas
mãos, numa mudez que nem pai nem mãe
compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que
mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos,
até vê-lo dobrar a outra esquina. Mas ele foi mais forte
do que ela. Nem uma só vez olhou para trás.
*Glossário: "basset" é um termo de origem francesa
"bas" que significa "baixo" ou "anão".
(Clarice Lispector. Escritora brasileira) -
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