Você é um número
Se você não tomar cuidado, vira número até para si
mesmo. Porque a partir do instante em que você nasce,
classificam-no com um número. O registro civil é um
número. Seu título de eleitor é um número.
Profissionalmente falando você também é. Para ser
motorista, tem carteira com número e chapa de carro. No
Imposto de Renda, o contribuinte é identificado com um
número. Seu prédio, seu telefone, seu número de
apartamento — tudo é número.
Se abre crediário, para eles você é um número. Se
tem propriedade, também. Se é sócio de um clube, tem um
número. Se é imortal da Academia Brasileira de Letras, tem
o número da cadeira.
Se é contribuinte de qualquer obra de beneficência,
também é solicitado por um número. Se faz viagem de
passeio ou de negócio, também recebe um número. Para
tomar um avião, dão-lhe um número. Se possui ações,
também recebe um. É claro que você é um número de
recenseamento. Se é católico, recebe número de batismo.
No registro civil ou religioso, você é numerado. Se possui
personalidade jurídica, tem. E quando morre, no jazigo, tem
um número. E a certidão de óbito também.
Nós não somos ninguém? Protesto. Aliás, é inútil o
protesto. E vai ver meu protesto também é número.
Uma amiga minha contou que no Alto Sertão de
Pernambuco uma mulher estava com o filho doente,
desidratado, foi ao Posto de Saúde. E recebeu a ficha
número 10. Mas dentro do horário previsto pelo médico a
criança não pôde ser atendida porque só atenderam até o
número 9. A criança morreu por causa de um número. Nós
somos culpados.
Se há uma guerra, você é classificado por um
número. Numa pulseira com placa metálica, se não me
engano.
Nós vamos lutar contra isso. Cada um é um, sem
número. O si-mesmo é apenas o si-mesmo.
Vamos ser gente, por favor. Nossa sociedade está
nos deixando secos como um número seco, como um osso
branco seco exposto ao sol. Meu número íntimo é 9. Só. 8.
Só. 7. Só. Sem somá-los nem transformá-los em novecentos
e oitenta e sete. Estou me classificando como um número?
Não, a intimidade não deixa. Veja, tentei várias vezes na vida
não ter número e não escapei. O que faz com que
precisemos de muito carinho, de nome próprio, de
genuinidade. Vamos amar que amor não tem número. Ou
tem?
(LISPECTOR, Clarice — adaptado.)