Pelo ralo
Os pratos estão empilhados de um dos lados da pia numa torre irregular, equilibrando-se uns sobre os outros de forma
precária, como os destroços de um prédio bombardeado ameaçando cair. Estão sujos. Muito sujos. Foram deixados ali já faz
algum tempo e os pedaços de detritos sobre eles se cristalizaram, tomando formas absurdas, surreais. Há grãos e lascas, restos
de folhas, amontoados de uma indefinida massa de cor acinzentada. Copos e tigelas de vidro, também empilhados num desenho
caótico, exibem a superfície maculada, cheia de nódoas, e o metal das panelas, chamuscado e sujo em vários pontos, lembra a
fuselagem de um avião incendiado. Mas há mais do que isso. Há talheres por toda parte, lâminas, cabos, extremidades
pontiagudas que surgem por ente os pratos, em sugestões inquietantes. E há ainda a cratera da pia, onde outros tantos pratos
e travessas, igualmente sujos, estão quase submersos numa água escura, como se, num campo de batalha, a chuva tivesse
caído sobre as cinzas. O cenário é desolador.
A mulher se aproxima, os olhos fixos na pia. Suas mãos, cujos dedos exibem dobras ressecadas, resultado de muitos anos
de contato com água e detergente, movem-se em torno da cintura e caminham até as costas, levando as tiras do avental
vermelho e branco. Com gestos rápidos, ágeis, faz-se a laçada, que ajusta o avental em seu lugar. E a mulher abre a torneira.
Encostada à pia, espera, tocando a água de vez em quando com a ponta dos dedos. Ligou o aquecedor no máximo, pois sabe
que precisará dela fumegante, para derreter as crostas formadas depois de tantas horas. Logo o vapor começa a subir. Emana
da pia, primeiro lentamente, depois numa nuvem mais encorpada, quase apocalíptica, enquanto o jato d’água chia contra a
superfície da louça suja. A mulher despeja algumas gotas de detergentes na esponja e começa a lavar. Esfrega com vigor,
começando pelas travessas que estavam imersas na água parada, pegando em seguida os copos e, por fim, a pilha de pratos.
Vai acumulando-os, já envoltos em espuma, de um dos lados da pia, num trabalho longo, árduo. E só depois se põe a enxaguá-los, deixando que a água escoe, levando consigo o que resta dos detritos.
De repente, a mulher sorri. As pessoas não acreditam, mas ela gosta de lavar louça. Sempre gostou. A sensação da água
quente nas mãos, seu jato carregando as impurezas, são para ela um bálsamo. “É bom assistir a essa passagem, à transformação
do sujo em limpo”, ouviu dizer um dia um poeta, que também gostava de lavar louça. Ficara feliz ao ouvir aquilo. Só então se
dera conta do quanto havia de beleza e poesia nesses gestos tão simples. Mas agora a mulher suspira. Queria poder também
lavar os erros do mundo, desfazer seus escombros, apagar-lhe as nódoas, envolver em sabão todos os ódios e horrores, as
misérias e mentiras. Porque, afinal, do jeito que as coisas andam, é o próprio mundo que vai acabar – ele inteiro – descendo
pelo ralo.
(SEIXAS, Heloisa. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 23 set. 2001. Revista de Domingo, Seção Contos Mínimos.)