A difícil tarefa de resumir 2022
A difícil tarefa de resumir 2022
A tradição cultivada pela língua inglesa de eleger a “palavra do
ano” às vésperas do Natal tem menos passado do que se
imagina. Também pode não ter muito futuro. Há indícios de que a
conversa pública antes mediada pela imprensa, e hoje cada vez
mais abrigada em redes sociais, está caminhando para se tornar
menos verbal.
Não que estejamos prestes a abrir mão da palavra. Ocorre que
ela parece perder prestígio como unidade de pensamento,
nomeadora de realidades, para virar coadjuvante de imagens e
memes, bordão, hashtag. É o que se deduz dos caminhos
tomados pelo dicionário Oxford, que, desde 2004, produz uma
das mais aguardadas escolhas de palavra do ano.
Neste 2022, o gigante lexicográfico terceirizou a eleição,
anteriormente a cargo de um grupo de especialistas, para os
leitores que votam online. Se isso já seria passível de crítica como
uma renúncia ao espírito crítico (palavra) em prol do populismo
digital (meme), vale observar as três candidatas ao título que o
Oxford pré-selecionou. Só uma é um vocábulo propriamente dito:
metaverso, neologismo velho de algumas décadas que significa
universo virtual. A palavra ganhou novo fôlego com o
reposicionamento estratégico do Facebook, rebatizado Meta há
pouco mais de um ano. As outras candidatas são uma hashtag de
apoio político “IStandWith”, algo como “euestoucom” — e uma
expressão meio trivial e meio obscura que, usada pela atriz ítaloamericana Julia Fox, viralizou este ano: “goblin mode”.
Se você nunca ouviu falar nisso, não se preocupe: por que
deveria? “Modo duende” (em tradução literal) é um estado de
espírito em que se “rejeitam as expectativas que a sociedade
deposita sobre nós, em favor de fazer o que se quiser”. Palavras
do Oxford. Uau.
Não chega a ser uma guinada brusca em direção à banalidade.
Lançado em 1884, o vetusto Oxford vem fazendo força para
rejuvenescer: em 2015, escolheu como palavra do ano uma não
palavra, o emoji que chora de tanto rir.
A preocupação em não perder o pulso das coisas é louvável, mas
quando o mais importante dicionário da língua inglesa dá sinais
de se curvar à demagogia das redes, como não imaginar que as
“palavras do ano” têm seus dias contados?
Uma sociedade de estudos linguísticos da Alemanha — então
Ocidental— leva o crédito de ter criado esse tipo de eleição, em
1971. Era a princípio um exercício acadêmico de monitoramento
vocabular, nada que encantasse o público leigo.
A língua inglesa aderiu à novidade nos anos 1990. Desde então,
em versão pop, escolher palavras que carimbem anos — às
vezes por serem novidades e outras por serem, apesar de
antigas, emblemáticas do momento—virou atrativo midiático,
pauta obrigatória de todo dezembro, como as retrospectivas.
Embora haja tentativas esparsas, o Brasil nunca embarcou de
verdade na moda, e agora pode ser tarde. Ou não? Mesmo na
defensiva, há sinais de que a palavra resiste a conceder a
derrota.
Recentemente, o dicionário Merriam-Webster anunciou
“gaslighting” como vocábulo do ano. Em geral usado no Brasil
sem tradução, o termo designa um conjunto de técnicas de
manipulação psicológica individual ou coletiva.
O gaslighting leva suas vítimas a duvidar do próprio juízo,
embaralhando verdade e mentira. Às vezes, gente assim
manipulada chega a acreditar que pen drives entregues em mãos
são o último grito da tecnologia.
A palavra está viva, apesar de tudo.
Sérgio Rodrigues
Folha de São Paulo, 01/12/2022