Leia atentamente o texto a seguir, escrito pelo cronista brasileiro Paulo Mendes Campos, para responder a questão.
“Bar é um objeto que se gasta como camisa, isto é, depois de certo tempo de uso é sempre necessário comprar
uma camisa nova e mudar de bar. É preciso escolher bem o nosso bar, pois tão desagradável quanto tomar um
bonde errado é tomar um bar errado. O homem que toma o bar errado pode gerar sérios aborrecimentos ou ser a
vítima deles. Não escrevo este artigo no bar. Não entendo pessoas que bebem para escrever. A bebida consola;
o homem bebe; logo, o homem precisa ser consolado. A dramaticidade fundamental do destino é o penhor dos
fabricantes do veneno. Porque o álcool é um veneno mortal. Um veneno mortal que consola e... degrada o homem. Mas outro escritor católico, o gordo, sutil e sedento G. K. Chesterton, nega que o álcool degrade o homem:
o homem degrada o álcool. Chesterton foi um louco que perdeu tudo, menos a razão; é claro, por isto mesmo,
que a criatura humana é o princípio da degradação de todas as coisas sobre a Terra. O álcool é inocente. Só um
típico alcoólico anônimo seria incapaz de entender a inocência do álcool e a inescrutável malícia dos homens.
O homem bebe para disfarçar a humilhação terrestre; para ser consolado; para driblar a si mesmo; o homem
bebe como o poeta escreve seus versos, o compositor faz uma sonata, o místico sai arrebatado pela janela do
claustro, a adolescente adora cinema, o fiel se confessa, o neurótico busca o analista. Quem foge de si mesmo
se encontra. Quem procura encontrar-se, se afasta de si mesmo. Não é paradoxo, é o imbricamento da natureza humana. E esta é uma espiral inflacionária cuja moeda, em desvalorização permanente, é a nossa precária
percepção da realidade. Somos inflacionados pelo nosso próprio vazio: a reação nervosa da embriaguez parece
encher-nos ou pelo menos atenuar a presença do espírito desesperado dentro do corpo perfeitamente disposto
a possuir os bens terrestres e gozá-los. Espírito e corpo não se entendem: o primeiro conhece exaustivamente
a morte, enquanto o segundo é imortal enquanto vive. Daí, essa tocata e fuga a repetir-se indefinidamente dentro de cada ser humano, este desequilíbrio que nos leva ao bar, à igreja, ao consultório do analista, às alcovas
sexuais, à arte, à ciência, à ambição de mando e dinheiro, a tudo. As fugas e fantasias da natureza humana são
tantas, e tão arraigadas, que se confundem com a própria natureza humana. Não seria possível definir o homem
como um animal que nasce, alimenta-se, pensa, reproduz e morre; o que interessa no homem é o que sobra; o
fundamental nele é o supérfluo. É preciso beber. A natureza deu-nos a embriaguez natural do sono. Oito horas
de sono não bastam. É preciso estar bêbedo – de vinho, poesia, religião. É preciso estar bêbedo de todas as
mentiras vitais (a expressão é de Ibsen): de poder, de luxo, de luxúria, de bondade, de satanismo, de idealismo,
de Deus, de violência, de humildade, de loucura, de qualquer coisa. O álcool é tão só a modalidade primária e
comum da embriaguez. O bar é a primeira instância da causa do homem”. (“Por que bebemos tanto assim”, de Paulo
Mendes Campos, com adaptações).