TEXTO V – APANHO TODOS OS DIAS DA GRAMÁTICA.
ELA NÃO É TÃO IMPORTANTE ASSIM
Conceição Freitas, Metrópoles, 03/09/2019
Verissimo, filho do Érico, tem uma crônica saborosa sobre a língua portuguesa. Que as
feministas mais aguerridas não nos leiam, ele diz que a gramática precisa apanhar todos os
dias pra saber quem é que manda. Eu apanho dela todos os dias.
Nunca consegui decorar regras gramaticais. Tudo que é muito explicadinho me confunde.
Sorte minha é que a memória visual das boas leituras tem me ajudado desde sempre a não
tropeçar nos erros mais grotescos. Sei que "paralisação" é com S, que "cônjuge" se escreve
assim, que "cafta" é uma receita da culinária árabe e "Kafka" é o genial escritor austríaco.
O conhecimento da língua portuguesa não é um valor moral e nem mesmo distingue quem
é inteligente de quem não é. O rigor na obediência às regras gramaticais é um divisor de
classe – os cultos e os supostamente incultos; os inteligentes e os burros; os graduados e
os sem graduação.
O Verissimo escreveu o que quero dizer de um jeito delicioso:
“...a linguagem, qualquer linguagem, é um meio de comunicação e deve ser julgada exclusivamente como tal. Respeitadas algumas regras básicas da gramática, para evitar os
vexames mais gritantes, as outras são dispensáveis. A sintaxe é uma questão de uso de
princípios. Escrever bem é escrever claro, não necessariamente certo. Por exemplo: dizer
‘escrever claro’ não é certo, mas é claro, certo? O importante é comunicar (e quando
possível surpreender, iluminar, divertir, comover...). Mas aí entramos na área do talento, que
também não tem nada a ver com a gramática). A gramática é o esqueleto da língua. Só
predomina nas línguas mortas, e aí de interesse restrito de necrólogos e professores de
Latim, gente em geral pouco comunicativa. Aquela sombria gravidade que a gente nota nas
fotografias em grupo dos membros da Academia Brasileira de Letras é de reprovação pelo
português ainda estar vivo. Eles só estão esperando, fardados, que o português morra para
poderem carregar o caixão e escrever sua autópsia definitiva. É o esqueleto que nos traz de
pé, certo, mas ele não informa nada, como a gramática é a estrutura da língua, mas sozinha
não diz nada, não tem futuro. As múmias conversam entre si em gramática pura.”
Impura, sigo apanhando da gramática mesmo tendo de lidar com ela todos os dias, há tanto
tempo que nem é bom contar.
Não consigo decorar, por exemplo, quando devo usar “senão” ou “se não”. (“Senão”
significa “do contrário”. Como no exemplo: “Me escute, senão vou embora.” “Se não” quer
dizer “caso não”. Assim: “Se não vier logo, perderá a vez.” Mas como a língua portuguesa
não facilita pra ninguém, se for trocar o “se não” por “caso não”, muda a conjugação do
verbo: “Caso não venha logo, perderá a vez.”) Nem adianta escrever uma crônica sobre o
“senão”. Da próxima vez, terei de “googlar” de novo. Desconfio que há uma razão freudiana
nessa minha dificuldade com o “se” e o “não”. Talvez porque não me dê bem com
dubiedades.
Se for pra contar vantagem, posso dizer que tiro de letra o uso do “porque”, “por que”,
“porquê” e “por quê”. Também sei de cor, desde criancinha, todas as preposições simples:
“A, ante, após, até, com, contra, de, desde, em, entre, para, per, perante, por, sem, sobre,
sob, trás”. Talvez tenha sido a única lista que decorei no tempo da escola. Como ouvi há
muito tempo de um psicanalista: “Não existe memória, existe desejória.” Por isso, só guardo
o que é essencialmente importante.
Se não morri até agora, disso não morro mais. Será que acertei? (Se errei, senhor revisor,
me diga, que incluo suas considerações. Grata.) Senão, posso perder os leitores que
pacientemente venho tentando conquistar. (Acho que agora acertei!)