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COMPREENDER O BRASIL É DIFÍCIL, MAS NÃO IMPOSSÍVEL
Ouvimos muitos comentários de analistas sociais e também do senso comum (sobretudo) de
que o grande mal do Brasil é o “jeitinho brasileiro”, que é atrelado à corrupção. Pois bem, a
observação não é de todo errada, mas esconde outro truísmo aparente. Os males do Brasil enquanto
nação e enquanto Estado assentam-se em dois pilares: o genocídio indígena e a escravidão
africana.
Advém daí o machismo e a cultura do estupro: as índias foram as primeiras a serem
violentadas pelo colonizador europeu, o que acabou naturalizando essa abominável prática de
invasão do corpo do outro, tempos depois aplicando-se o mesmo “método” no corpo da mulher negra
e da mulher branca. Os escravocratas, em uma sociedade patriarcal, tornaram legítima também a
decisão sobre o corpo da mulher, inclusive da sua esposa: bela, recatada e do lar, e da sua ama de
leite (a mãe preta), cujo leite afro acalentava seu filho branco.
Advém daí o racismo: o colonizador branco, com a chancela da religião cristã e da ciência,
arrogou para si a superioridade racial branca, em detrimento do negro, do indígena e do asiático.
Nem o questionável 13 de maio nem o estado democrático de direito superou isso. Isso é
reproduzido hoje em nível societário. Quem mais morre nas periferias das cidades brasileiras são
negros. Alguém cantou num passado recente “todo camburão tem um pouco de navio negreiro”.
Advém daí o paternalismo: transplantamos para nossas relações humanas as antigas
relações típicas de senhor escravo, não na acepção nietzschiana (moral do senhor/moral do
escravo), mas na acepção eugênica herdada do darwinismo social de Spencer, que hierarquizou as
raças, estando essas associadas ao processo civilizatório de aculturação do indígena, método
descrito de forma primorosa por Alfredo Bosi em “As flechas do Sagrado”. Os jesuítas arrogaram
para si a responsabilidade por “cuidar do indígena”, inculcando no colonizado a dependência
contínua na esteira da “benevolência” mal intencionada. Mal sabiam os colonizadores que as etnias
também negociavam, como enunciou Eduardo Viveiros de Castro em “A inconstância da alma
selvagem”: os tupinambás jamais abriram mão do que lhes era essencial, a guerra.
Advém daí o genocídio negro: desde 1982 até 2014 foram 1,2 milhões de negros mortos pela
polícia nas periferias, dados da Anistia Internacional. O negro de hoje é o escravizado de ontem e o
corpo reificado de anteontem. Na imprensa de hoje, a morte de um jovem branco de classe média
suscita debates em torno da violência, ao passo que a morte de um negro é mais uma estatística. Do
mesmo modo que a violência contra a mulher é naturalizada e contra a mulher negra duas vezes
mais, pois aprendemos com a “globeleza” que o corpo negro feminino é o veículo do pecado e que o
corpo feminino deve ser submetido à vontade do corpo masculino, estando apto desde sempre a
servi-lo.
Advém daí o genocídio indígena, ainda em curso. Ruralistas e posseiros o fazem à luz do dia
no Norte e Centro-Oeste do país. A imprensa fala pouco, o silêncio cemiterial em torno do tema é um
crime confesso, típico de quem consente porque se cala.
Advém daí a corrupção, pois, no processo colonizatório, legitimou-se a prática de que tudo
tem seu preço, quando até mesmo o corpo do outro poderia ser negociado, outrora o escravizado,
tempos depois o trabalhador fabril, hoje qualquer alma vulnerável ao consumismo em busca de
status.
Resumo da ópera: a corrupção é um subciclo de dois ciclos maiores: genocídio e escravidão.
Por isso esses dois temas interessam a todos os brasileiros. Enquanto não encararmos isso, não
avançaremos como povo ou como nação.
Victor Martins. Disponível em: http://www.circulopalmarino.org.br/2016/05/compreender-o-brasil-e-dificil-mas-nao-impossivel. Acesso em:
14/07/16. Adaptado.