Os mortos
Esse dia que ainda se reserva aos Finados é quase desnecessário em seu simbolismo, porque os moços não reparam nele, e os maduros e os velhos têm já formado o seu
sentimento da morte e dos mortos. Esta é uma conquista do
tempo, e prescinde de comemorações para se consolidar.
Basta o exercício de viver, para nos desprender capciosamente da vida, ou, pelo menos, para entrelaçá-la de tal jeito
com a morte que passamos a sentir essa última como forma
daquela, e forma talvez mais apurada, à maneira de uma gravura que só se completa depois de provas sucessivas. Falo
em gravura, e vejo à minha frente um desses originais de
Goeldi*, em que o esplendor noturno é raiado de vermelho ou
verde, numa condensação de treva tão intensa e compacta
que não se sabe como a penetra esse facho de luz deslumbrante, coexistindo daí por diante numa espécie de casamento sinistro, à primeira impressão. Não, não é sinistro. Posso
informar pessoalmente que a imbricação da ideia de morte
na ideia de vida não é arrasadora para o homem, senão que
constitui uma das sínteses morais a que o tempo nos conduz,
como parte da experiência individual.
Os que eram do mesmo sangue, os amigos e companheiros que ainda há pouco sorriam a nosso lado ou mesmo
nos impacientavam lá de vez em quando (mas era tão bom
que nos impacientassem, agora que nem isso recebemos
deles), onde estão, onde estão? Voltamo-nos para fora de
nós e não os recuperamos; mas se nos aprofundarmos um
pouco, vamos encontrá-los fundidos em nosso conhecimento
das coisas, incorporados à nossa maneira de andar, comer e
dormir; intatos, mesmo sob a camada de esquecimento em
que outra vez os sepultamos, porque, contraditoriamente,
eles não se deixaram ficar esquecidos, e brincam de se fazer
lembrados nas horas mais imprevistas.
(Carlos Drummond de Andrade, Fala, amendoeira)
* Oswaldo Goeldi, ilustrador, gravurista, desenhista brasileiro.