Leia o texto a seguir:
E tinha a cabeça cheia deles - Marina Colasanti
Todos os dias, ao primeiro sol da manhã, mãe e filha sentavam-se na soleira da porta. E deitada a cabeça da filha no colo da
mãe, começava esta a catar-lhe piolhos.
Os dedos ágeis conheciam sua tarefa. Como se vissem,
patrulhavam a cabeleira separando mechas, esquadrinhando
entre os fios, expondo o claro azulado do couro. E na alternância
ritmada de suas pontas macias, procuravam os minúsculos
inimigos, levemente arranhando com as unhas, em carícia de
cafuné.
Com o rosto metido no escuro pano da saia da mãe, vertidos
os cabelos sobre a testa, a filha deixava-se ficar enlanguescida,
enquanto a massagem tamborilada daqueles dedos parecia
penetrar-lhe a cabeça, e o calor crescente da manhã lhe
entrefechava os olhos.
Foi talvez devido à modorra que a invadia, entrega prazerosa
de quem se submete a outros dedos, que nada percebeu
naquela manhã – a não ser, talvez, uma leve pontada – quando
a mãe, devassando gulosa o secreto reduto da nuca, segurou
seu achado entre polegar e indicador e, puxando-o ao longo do
fio negro e lustroso em gesto de vitória, extraiu-lhe o primeiro
pensamento.
Fonte: https://contobrasileiro.com.br/e-tinha-a-cabeca-cheia-deles-marinacolassanti/. Acesso em 21/09/2023