INFELICIDADES CONTEMPORÂNEAS
Marcia Tiburi – 31 de maio de 2017
Faz tempo que ando pensando na felicidade como categoria ética. Longe da felicidade publicitária,
da felicidade das mercadorias, me parece necessário manter esse conceito em cena devolvendo-lhe
ao campo da análise crítica contra a ordem da ingenuidade onde ele foi lançado. Justamente porque
o tema da felicidade foi capturado na ordem das produções discursivas, falar da felicidade se torna
um desafio quando muita gente tenta transformá-la em uma bobagem, uma caretice, um assunto do
passado.
A felicidade é assunto do campo da ética. Em Aristóteles ela representa o máximo da virtude. Feliz
acima de tudo é quem pratica a filosofia, mas na vida em geral, aquele que vive uma vida justa já pode
ser feliz. Uma vida justa é uma vida boa, vivida com dignidade. Aquele que alcança um meio termo
entre extremos e faltas sempre falsos, sempre destrutivos, sempre irreais, é alguém que pode se dizer
feliz. A felicidade não é inalcançável, ela é busca bem prática que conduz a vida.
Hoje, depois de uma aula sobre o tema, uma aula crítica e analítica, daquelas que revoltam os
ressentidos e fortalecem os corajosos, uma pessoa que se anunciou tendo mais de 80 anos, me
abraçou e me disse, “sua aula me deixou feliz”. Eu também fiquei feliz.
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Fico pensando no que o termo felicidade pode ainda nos dizer, quando, por meio de uma deturpação
conceitual, localizamos a felicidade nas mercadorias, quando a confundimos com fantasias e
propagandas.
A felicidade sempre foi uma ideia e uma prática complexas. Sua complexidade remete a uma
instabilidade inevitável. Em nossos dias, as pessoas falam muito da felicidade porque a desejam.
E se a desejam é porque, de algum modo, podemos dizer que sonham com ela. Mas não podem
pegá-la, comprá-la, obtê-la simplesmente e justamente porque ela não é uma coisa. Por isso, a ideia
de felicidade não combina com a ideia de mercadoria. Como ideia, a felicidade é aberta e produz
aberturas. Ela não cabe nas coisas, nem nas mais ricas, nem nas mais bonitas. Porque quando a
felicidade está, ela é como a morte, as coisas, assim como a vida, já não estão.
Há, no entanto, coisas que nos lembram ou nos iludem da ideia de felicidade, mas sempre o fazem
como um ideal ou um simulacro. Ninguém pode ser feliz plenamente, mas sempre pode buscar ser feliz
em uma medida muito abstrata que, no entanto, nos conecta à outras utopias. Não é sem sabedoria que,
em vez de pensarmos em uma única felicidade, começamos há muito tempo a pensar em felicidades no
plural. Se não se pode ser feliz no todo, que se seja em lugares, em setores da vida. Que se realize a
felicidade relativa, contra uma felicidade absoluta. Abaixo os absolutos, diz todo pensamento razoável .
Felicidades mil é o que desejamos àqueles que amamos. É um voto, apenas, um voto de fé que
em tudo se confunde com a postura ética de quem deseja o bem ao outro. Felicidade, lembremos os
filósofos antigos, era o sumo bem, o bem maior, o Bem com letra maiúscula. Uma coisa para inspirar,
para fazer suportar as dores e sofrimentos da vida comum. [...].
Adaptado de: (https://revistacult.uol.com.br/home/marcia-tiburi-infelicidades-contemporaneas/).