Texto 3
OS BONDES
Pode ser fantasia, papel leva tudo, diz o povo, mas das
gentis novidades que os jornais prometem por obra do
novo prefeito do Rio, a que mais me entusiasma será a
volta dos bondes, imagina, os bondes. Nem acredito, a
tanto não chegam as minhas veleidades. Bonde
circulando pela rua, a gente esperando no poste de listra
branca, escalando o alto estribo, instalando-se no velho
banco de madeira, abrindo o jornal e deixando o
motorneiro correr, o vento nos banhando o rosto… E o
dito motorneiro badalando na sua campa delém-delém! e
o condutor tilintando os níqueis no nosso nariz distraído,
faz favor! – e marcando as passagens na caixa sonora
do teto, e a gente puxando a sineta para descer e os
pingentes circunavegando os carros – não, não ouso
acreditar. Bonde, o mais civilizado veículo concebido pela
técnica, bonde não esquenta, não queima óleo, não
vomita fumaça, não buzina, não sai do caminho, não
ultrapassa os outros, não abalroa, não agride, não vira
em canal, não despenca de viaduto, não caça pedestre,
não fura pneu, não quebra barra de direção, não dá
tranco para acomodar a carga humana, não depende de
um motorista sofrendo de psicotécnica, mas de um
motorneiro pachorrento, bonde, ah, bonde, não sei o que
diga em teu louvor, já que, plagiando Manuel Bandeira,
por mais que te louvemos nunca te louvaremos bem!
Sim, sei que são sonhos. Mas como para Deus nada é
impossível, por que não um milagre? Um anjo inspirar o
prefeito e ele começar, tentativamente, pondo bondinhos
a correr pela periferia da cidade, subúrbios, ilhas, esses
lugares cariocas mais pacíficos. Na ilha do Governador,
por exemplo, de onde tiraram os bondes foi crime, com
aquelas ruas estreitíssimas à beira-mar, onde só o
bonde, preso ao trilho, circulava por elas sem risco.
Depois dos ônibus, é só verem as estatísticas, morre lá
mais gente atropelada do que de assalto.
E a experiência dando certo em Campo Grande, Santa
Cruz – os felizardos! porque não ousar uma tentativa pelo
Leblon, talvez um circular pela Lagoa, seria muito
turístico. Ou, ainda melhor, uma linha Leblon-Arpoador,
ao longo da praia, de onde seriam expulsos os
automóveis; nos bondes os banhistas poderiam circular
até de calção molhado – devolvendo-se ao uso a
venerável instituição do taioba.
Falei em taioba. Alguém já pensou que, depois extintos
os bondes de segunda classe, não existe mais maneira
alguma de pobre carregar seus fardos – lavadeira a sua
trouxa, mascate a sua mala, vassoureiro as suas
vassouras, verdureiro a sua cesta? Que foi que botaram
em substituição ao bonde taioba? Nada, claro. Quem
pôde, comprou a sua bicicleta ou triciclo para atravancar
ainda mais o tráfego. Pobre cada dia tem menos vez.
Nos tempos de eu mocinha, em Fortaleza, era de bonde
que se namorava. O primeiro sinal de interesse que o
rapaz dava à moça era pagar a passagem dela. Se ela
aceitava, estava começado o namoro e o galã tinha
direito de vir sentar-se ao seu lado, ou pendurar-se no
balaústre, junto, se ela ia na ponta do banco. Menina
namoradeira escolhia sempre a ponta do banco, para
facilitar.
Em Belo Horizonte, no bonde que, do Bar do Ponto, subia
a Rua da Bahia, quando o condutor ficava quieto lá atrás, já se sabia: era o Senador Melo Viana que vinha naquele
bonde e pagava a lotação inteira. Todos se viravam em
procura do perfil severo do senador que lia o seu jornal;
de um lado e de outro pipocavam discretos
agradecimentos mineiros e o senador se mantinha
impassível, embora, naturalmente, gratificadíssimo
As moças da Tijuca aqui no Rio, que vinham trabalhar na
cidade, bordavam no trajeto de bonde grande parte do
seu enxoval; muita velha senhora tijucana, hoje em dia,
há de lembrar-se disso. As de Ipanema não sei, nunca
me contaram. Mas todas essas galanterias se acabaram.
Hoje, em transporte coletivo, só se escuta palavrão,
resmungos e ranger de dentes.
Então, ante a dura realidade, ante os dinossauros
assassinos disparados pelo asfalto, deixem-me sonhar
com os bondes. Nesta cidade feroz, seria cada bonde
uma ilha de segurança, de amável fraternidade, sempre
cabia mais um! ai, saudades.
Nosso reino por um bonde!
(Rio, 07/04/1975)
Coletânea de crônicas reunidas no livro Melhores Crônicas, de
Rachel de Queiroz, com seleção e prefácio de Heloisa Buarque de
Hollanda.