TEXTO I
OS IDIOTAS DA OBJETIVIDADE
(Nelson Rodrigues)
Sou da imprensa anterior ao copy desk. Tinha treze anos quando me iniciei no jornal, como repórter de polícia.
Na redação não havia nada da aridez atual e pelo contrário: — era uma cova de delícias. O sujeito ganhava
mal ou simplesmente não ganhava. Para comer, dependia de um vale utópico de cinco ou dez mil-réis. Mas
tinha a compensação da glória. Quem redigia um atropelamento julgava-se um estilista. E a própria vaidade o
remunerava. Cada qual era um pavão enfático. Escrevia na véspera e no dia seguinte via-se impresso, sem o
retoque de uma vírgula. Havia uma volúpia autoral inenarrável. E nenhum estilo era profanado por uma emenda,
jamais.
Durante várias gerações foi assim e sempre assim. De repente, explodiu o copy desk. Houve um impacto medonho.
Qualquer um na redação, seja repórter de setor ou editorialista, tem uma sagrada vaidade estilística. E o copy desk
não respeitava ninguém. Se lá aparecesse um Proust, seria reescrito do mesmo jeito. Sim, o copy desk instalou-se
como a figura demoníaca da redação.
Falei no demônio e pode parecer que foi o Príncipe das Trevas que criou a nova moda. Não, o abominável Pai da
Mentira não é o autor do copy desk. Quem o lançou e promoveu foi Pompeu de Sousa. Era ainda o Diário Carioca,
do Senador, do Danton. Não quero ser injusto, mesmo porque o Pompeu é meu amigo. Ele teve um pretexto,
digamos assim, histórico, para tentar a inovação.
Havia na imprensa uma massa de analfabetos. Saíam as coisas mais incríveis. Lembro-me de que alguém, num
crime passional, terminou assim a matéria: — “E nem um goivinho ornava a cova dela”. Dirão vocês que esse
fecho de ouro é puramente folclórico. Não sei e talvez. Mas saía coisa parecida. E o Pompeu trouxe para cá o que
se fazia nos Estados Unidos — o copy desk.
Começava a nova imprensa. Primeiro, foi só o Diário Carioca; pouco depois, os outros, por imitação, o
acompanharam.
Rapidamente, os nossos jornais foram atacados de uma doença grave: — a objetividade. Daí para o “idiota da
objetividade” seria um passo. Certa vez, encontrei-me com o Moacir Werneck de Castro. Gosto muito dele e o
saudei com a mais larga e cálida efusão. E o Moacir, com seu perfil de Lord Byron, disse para mim, risonhamente:
— “Eu sou um idiota da objetividade”.
Também Roberto Campos, mais tarde, em discurso, diria: — “Eu sou um idiota da objetividade”. Na verdade,
tanto Roberto como Moacir são dois líricos. Eis o que eu queria dizer: — o idiota da objetividade inunda as mesas
de redação e seu autor foi, mais uma vez, Pompeu de Sousa. Aliás, devo dizer que o copy desk e o idiota da
objetividade são gêmeos e um explica o outro.
E toda a imprensa passou a usar a palavra “objetividade” como um simples brinquedo auditivo. A crônica esportiva
via times e jogadores “objetivos”. Equipes e jogadores eram condenados por falta de objetividade. Um exemplo
da nova linguagem foi o atentado de Toneleros. Toda a nação tremeu. Era óbvio que o crime trazia, em seu
ventre, uma tragédia nacional. Podia ser até a guerra civil. Em menos de 24 horas o Brasil se preparou para matar
ou para morrer. E como noticiou o Diário Carioca o acontecimento? Era uma catástrofe. O jornal deu-lhe esse
tom de catástrofe? Não e nunca. O Diário Carioca nada concedeu à emoção nem ao espanto. Podia ter posto na
manchete, e ao menos na manchete, um ponto de exclamação. Foi de uma casta, exemplar objetividade. Tom
estrita e secamente informativo. Tratou o drama histórico como se fosse o atropelamento do Zezinho, ali da
esquina.
Era, repito, a implacável objetividade. E, depois, Getúlio deu um tiro no peito. Ali estava o Brasil, novamente, cara
a cara com a guerra civil. E que fez o Diário Carioca? A aragem da tragédia soprou nas suas páginas? Jamais. No
princípio do século, mataram o rei e o príncipe herdeiro de Portugal. (Segundo me diz o luso Álvaro Nascimento,
o rei tinha o olho perdidamente azul). Aqui, o nosso Correio da Manhã abria cinco manchetes. Os tipos enormes
eram um soco visual. E rezava a quinta manchete: “HORRÍVEL EMOÇÃO!”. Vejam vocês: — “HORRÍVEL EMOÇÃO!”.
O Diário Carioca não pingou uma lágrima sobre o corpo de Getúlio. Era a monstruosa e alienada objetividade. As
duas coisas pareciam não ter nenhuma conexão: — o fato e a sua cobertura.
Estava um povo inteiro a se desgrenhar, a chorar lágrimas de pedra. E a reportagem, sem entranhas, ignorava a
pavorosa emoção popular. Outro exemplo seria ainda o assassinato de Kennedy.
Na velha imprensa as manchetes choravam com o leitor. A partir do copy desk, sumiu a emoção dos títulos e
subtítulos. E que pobre cadáver foi Kennedy na primeira página, por exemplo, do Jornal do Brasil. A manchete
humilhava a catástrofe. O mesmo e impessoal tom informativo. Estava lá o cadáver ainda quente. Uma bala
arrancara o seu queixo forte, plástico, vital. Nenhum espanto da manchete. Havia um abismo entre o Jornal do
Brasil e a tragédia, entre o Jornal do Brasil e a cara mutilada. Pode-se falar na desumanização da manchete.
O Jornal do Brasil, sob o reinado do copy desk, lembra-me aquela página célebre de ficção. Era uma lavadeira que
se viu, de repente, no meio de uma baderna horrorosa. Tiro e bordoada em quantidade. A lavadeira veio espiar
a briga. Lá adiante, numa colina, viu um baixinho olhando por um binóculo. Ali estava Napoleão e ali estava
Waterloo. Mas a santa mulher ignorou um e outro; e veio para dentro ensaboar a sua roupa suja. Eis o que eu
queria dizer: — a primeira página do Jornal do Brasil tem a mesma alienação da lavadeira diante dos napoleões
e das batalhas.
E o pior é que, pouco a pouco, o copy desk vem fazendo do leitor um outro idiota da objetividade. A aridez de um
se transmite ao outro. Eu me pergunto se, um dia, não seremos nós 80 milhões de copy desks? (...)
Disponível em: https://contobrasileiro.com.br/os-idiotas-da-objetividade-cronica-de-nelson-rodrigues/ (Adaptado). Acesso em: 8 jan. 2023.