As ciências sociais e o inglês
O inglês é a língua da ciência. As razões para isso estão relacionadas às profundas transformações que ocorreram
no pós-Guerra. A ciência e a tecnologia, que até então evoluíam em esferas relativamente separadas de conhecimento,
se integram num único sistema. [...] As tecnologias pressupõem um investimento contínuo de capital, a formação de
quadros especializados e a constituição de laboratórios de pesquisa. No início, isso se concentra nos Estados Unidos,
pois quando termina a Segunda Guerra Mundial, trata-se do único país industrializado onde a infraestrutura educacional
e tecnológica permanece intacta. Com a expansão do ensino superior e o desenvolvimento dos institutos de pesquisa,
assiste-se a um florescimento científico sem precedentes, aliado a uma política tecnológica na qual as criações científicas
estão vinculadas às descobertas e ao aperfeiçoamento das técnicas. A história do computador é um bom exemplo do
imbricamento das dimensões econômica, militar e científica num mesmo projeto. Como processador de dados e
informações, irá impulsionar todo um campo de atividades, desde as experiências de laboratório até a administração das
empresas (cujo raio de ação é, muitas vezes, transnacional). Ciência, tecnologia e administração – esferas diferenciadas
de práticas e saberes – aproximam-se assim como unidades que se alimentam e se reproduzem a partir da manipulação,
do controle e do processamento da informação. Creio que não seria exagero dizer que os elementos-chave do que
entendemos por sociedade de informação foram inicialmente preparados em inglês (conceitos, modelos, fórmulas e
procedimentos).
Não se deve imaginar que toda a produção científica, ou mesmo a sua maioria, se faça em inglês. Embora não
existam dados disponíveis em escala mundial, pode-se argumentar, e com boa parte de razão, que a literatura científica
em língua não inglesa tenha aumentado. Basta ver a proliferação de revistas nos mais diferentes países e a participação
dos cientistas em reuniões e congressos especializados. No entanto, como sublinha Baldauf, sua representação na
literatura recenseada nas principais bases de dados declinou. [...] Grande parte do que é produzido é simplesmente
ignorado pelo fato de não estar formalizado e formatado em informação imediatamente disponível, ou seja,
compreensível para um conjunto amplo de pessoas. [...] Entretanto, importa entender que um corpus literário,
funcionando como padrão de referência, é legitimado mundialmente somente quando disponível em inglês. Daí a
estratégia de vários grupos de dividir suas atividades em “locais” e “universais”. As primeiras são escritas em idioma
nacional e têm como veículo as revistas existentes no país; as outras concentram os cientistas de “elite”, cuja ambição é
conseguir uma maior visibilidade na cena mundial; interessa-lhes publicar nas revistas internacionais já consagradas.
[...]
Barthes (1984, p.15) diz que, para a ciência, “a linguagem é apenas um instrumento, aprisionado à matéria
científica (operações, hipóteses, resultados) que se diz, a antecede e existe fora dela, e que se tem o interesse de tornála
o mais transparente e neutra possível: há, de um lado, num primeiro plano, o conteúdo da mensagem científica, que é
tudo; de outro, num segundo plano, a forma verbal, que exprime esse conteúdo e que é nada […]. A ciência tem
certamente necessidade da linguagem, mas ela não está, como a literatura, na linguagem”. É preciso ter em mente que a
qualidade de ser instrumental não deve ser vista como algo negativo. Trata-se de uma opção deliberada em utilizar a
linguagem como uma ferramenta, cujo resultado é altamente compensador – o discurso científico. Resulta disso o amplo
consenso (embora sem unanimidade) existente entre os cientistas em relação ao uso do inglês, qual seja, o fato de ele
ser instrumental e eficiente. Mas qual seria a razão dessa instrumentalidade?
Richard Harris e Paul Mattick, trabalhando com as propriedades da linguagem e sua relação com a informação,
têm um argumento interessante. Consideram que cada domínio científico utiliza a linguagem de maneira limitada, por
isso é mais fácil traduzir textos científicos do que literários. Isso significa que a informação provida na mensagem é
dada não apenas pelo significado individual das palavras, mas também pela relação entre elas, sua combinação. Por
exemplo, podemos enunciar as sentenças “para mim, é preferível sair por último” e “eu prefiro sair por último”; há aí
uma variação da forma, mas não da informação transmitida. [...]
As ciências sociais estão demasiadamente amarradas aos contextos, daí a dificuldade de universalização de seus
discursos, porém, essa universalização nunca é inteira, emancipada, pois as notações se encontram aprisionadas à
“literalidade dos enunciados”. O pensamento sociológico é sempre uma tradução, algo intermediário entre o ideal de
universalidade (que é necessário) e o enraizamento dos fenômenos sociais. Ora, contexto e língua conjugam-se
mutuamente. O discurso das ciências da natureza se justifica porque consegue reduzir a linguagem, depurá-la de sua
malha sociocultural, algo impensável quando se deseja compreender a sociedade. Nesse caso, o inglês não pode
funcionar como língua franca, não por uma questão de princípio, ou de orgulho nacional, mas devido à própria natureza
do saber construído.
ORTIZ, Renato. As Ciências Sociais e o inglês. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 19, n. 54, fev/2004. Disponível em:
http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-69092004000100001&lng=en&nrm=iso&tlng=pt.
Acesso em: 2 jul. 2018.
[Fragmento Adaptado]