Texto I
A passagem por Budapeste se dissipara no
meu cérebro. Quando a recordava, era como um
rápido acidente, um fotograma que trepidasse na
fita da memória. Um lance ilusório, talvez, que me
dispensei de referir à Vanda ou a quem quer que
fosse. É verdade que a Vanda tampouco se
preocupava em saber que grandes escritores eram
esses que eu encontrava todo ano, em congressos
que ninguém noticiava. Talvez se defendesse de
fantasiar aventuras do marido mundo afora,
poetisas, dramaturgas, antropólogas que me
fizessem perder o juízo e o avião de volta. Portanto,
seria estúpido relatar, sem convicção, a uma Vanda
que não queria ouvir, a minha madrugada solitária
de Budapeste. E hoje aquela Budapeste estaria
morta e sepultada, não fosse o menino levantá-la
do meu sonho. Uma tentativa de se aproximar do
pai, compreendi logo mais, que eu a rechaçara com
uma brutalidade inexplicável. Às seis e meia em
ponto das manhãs seguintes, quando mãe e filho
acordavam com o despertador, me obriguei a
também me por de pé. Passei a dedicar ao menino
o tempo que me sobrava antes do trabalho, usado
em geral para me espreguiçar, pensar na vida e ler
jornais no banheiro. Agora, quando a Vanda saía
para a televisão, eu ficava na copa tomando café
com o meu filho. Observando-o às voltas com os
sorvetes e coca-colas, procurava restaurar as
feições perdidas em seu rosto flácido, e admiti que
eram as de um menino muito bonito. Com a ponta
do guardanapo, limpava-lhe a boca dos sucrilhos e
encontrava os lábios carnudos da mãe, como da
mãe eram seus olhos negros. [...]
(BUARQUE, Chico. Budapeste. São Paulo: Companhia das Letras,
2003, p.31-32)