Atenção: Para responder à questão, baseie-se no texto abaixo.
[Cidades devastadas]
Em vinte anos eliminaram a minha cidade e edificaram uma cidade estranha. Para quem continuou morando lá, a amputação
pode ter sido lenta, quase indolor; para mim, foi uma cirurgia de urgência, sem a inconsciência do anestésico.
Enterraram a minha cidade e muito de mim com ela. Por cima de nós construíram casas modernas, arranha-céus, agências
bancárias; pintaram tudo, deceparam árvores, demoliram, mudaram fachadas. Como se tivessem o propósito de desorientar-me, de
destruir tudo o que me estendia uma ponte entre o que sou e o que fui. Enterraram-me vivo na cidade morta.
Mas, feliz ou infelizmente, ainda não conseguiram soterrar de todo a minha cidade. Vou andando pela paisagem nova,
desconhecida, pela paisagem que não me quer e eu não entendo, quando de repente, entre dois prédios hostis, esquecida por
enquanto dos zangões imobiliários, surge, intacta e doce, a casa de Maria. Dói também a casa de Maria, mas é uma dor que conheço,
íntima e amiga.
Não digo nada a ninguém, disfarço o espanto dessa descoberta para não chamar o empreiteiro das demolições. Ah, se eles, os
empreiteiros, soubessem que aqui e ali repontam restos emocionantes da minha cidade em ruínas! Se eles soubessem que aqui e ali
vou encontrando passadiços que me permitem cruzar o abismo!
(Adaptado de CAMPOS, Paulo Mendes. Os sabiás da crônica. Antologia. Belo Horizonte: Autêntica, 2021, p. 209-210)