A compensação
Não faz muito, li um artigo sobre as pretensões literárias
de Napoleão Bonaparte. Aparentemente, Napoleão era um
escritor frustrado. Tinha escrito contos e poemas na juventude,
escreveu muito sobre política e estratégia militar, e sonhava em
escrever um grande romance. Acreditava-se, mesmo, que
Napoleão considerava a literatura sua verdadeira vocação, e
que foi sua incapacidade de escrever um grande romance e
conquistar uma reputação literária que o levou a escolher uma
alternativa menor, conquistar o mundo.
Não sei se é verdade, mas fiquei pensando no que isto
significa para os escritores de hoje e daqui. Em primeiro lugar,
claro, leva a pensar na enorme importância que tinha a literatura
nos séculos XVIII e XIX, e não apenas na França, onde,
anos depois de Napoleão Bonaparte, um Victor Hugo
empolgaria multidões e faria história não com batalhas e
canhões, mas com a força da palavra escrita, e não só em
conclamações e panfletos, mas, muitas vezes, na forma de
ficção. Não sei se devemos invejar uma época em que
reputações literárias e reputações guerreiras se equivaliam
desta maneira, e em que até a imaginação tinha tanto poder.
Mas acho que podemos invejar, pelo menos um pouco, o que a
literatura tinha então e parece ter perdido: relevância. Se
Napoleão pensava que podia ser tão relevante escrevendo
romances quanto comandando exércitos, e se um Victor Hugo
podia morrer como um dos homens mais relevantes do seu
tempo sem nunca ter trocado a palavra e a imaginação por
armas, então uma pergunta que nenhum escritor daquele tempo
se fazia é essa que nos fazemos o tempo todo: para que serve
a literatura, de que adianta a palavra impressa, onde está a
nossa relevância? Gostávamos de pensar que era através dos
seus escritores e intelectuais que o mundo se pensava e se
entendia, e a experiência humana era racionalizada. O estado
irracional do mundo neste começo de século é a medida do
fracasso desta missão, ou desta ilusão.
Depois que a literatura deixou de ser uma opção tão
vigorosa e vital para um homem de ação quanto a conquista
militar ou política – ou seja, depois que virou opção para
generais e políticos aposentados, mais compensação pela
perda de poder do que poder, e uma ocupação para, enfim,
meros escritores – ela nunca mais recuperou a sua respeitabilidade, na medida em que qualquer poder, por armas ou por
palavras, é respeitável. Hoje a literatura só participa da política,
do poder e da história como instrumento ou cúmplice. E não
pode nem escolher que tipo de cúmplice quer ser. Todos os que
escrevem no Brasil, principalmente os que têm um espaço na
imprensa para fazer sua pequena literatura ou simplesmente
dar seus palpites, têm esta preocupação. Ou deveriam ter. (...)
(Luiz Fernando Veríssimo, Banquete com os deuses. Rio de
Janeiro: Objetiva, 2003, pp. 113-14)