Ossos de neandertal reforçam ideia de que espécie
enterrava seus mortos
A descoberta mostra um complexo ritual fúnebre, e
contraria a antiga ideia de que nossos ancestrais
extintos eram burros e primitivos.
Por Bruno Carbinatto
A prática de enterrar mortos é inerentemente
humana. Nenhuma outra espécie conhecida pratica
esse costume - apesar de algumas possuírem
comportamentos equivalentes a um velório. Mas
talvez nem sempre tenha sido assim. Alguns
pesquisadores acreditam que os neandertais, um
tipo de hominídeo ancestral já extinto, também
realizavam enterros. E, agora, novos restos de um
neandertal, encontrados em 2019, parecem fortalecer
essa ideia.
É a primeira vez em 10 anos em que uma ossada de
neandertal é encontrada - e o primeiro achado do
século em que o esqueleto está articulado, ou seja,
os ossos ainda estão nas suas posições originais.
Eles foram escavados na Caverna de Shanidar, que
fica na região do Curdistão no Iraque, e consistem
em um tronco, um crânio amassado e ossos de uma
mão esquerda. Técnicas de datação iniciais apontam
que o indivíduo, cujo sexo ainda não foi definido,
viveu há cerca de 70 mil anos e morreu como um
adulto de meia-idade, ou talvez até mais velho. Os
resultados foram publicados na revista Antiquity.
Algumas pistas indicam que o corpo foi enterrado
propositalmente: havia uma pedra triangular perto do
crânio, que poderia ter sido um apoio de cabeça ou
um marcador do local da cova; sua mão estava
colocada debaixo da cabeça, como se fosse um
travesseiro, e os sedimentos que cobriam seu corpo
tinham características a aparência diferentes dos que
estavam embaixo dele.
Não é a primeira vez que uma descoberta indica que
os neandertais provavelmente enterravam seus
mortos. Na verdade, as pesquisas que moldaram
essa ideia aconteceram exatamente no mesmo local
décadas atrás. Nos anos 1950 e 1960, o arqueólogo
Ralph Solecki realizou uma série de escavações na
Caverna de Shanidar e encontrou dez ossadas de
homens, mulheres e crianças neandertais.
Na época, Solecki afirmou que havia várias
informações na caverna que podiam mudar a forma
que pensávamos sobre os costumes dos nossos
extintos parentes. Primeiro: quatro corpos
encontrados pareciam ter sido enterrados juntos e
propositalmente próximos, como se houvesse algum
tipo de padrão ou organização - características
típicas de um ritual fúnebre. Segundo, os restos de
um dos homens neandertais indicavam que, em vida,
ele havia sobrevivido à várias lesões, era surdo e
parcialmente cego. Mesmo assim, ele havia vivido
até a vida adulta - provavelmente com a ajuda de
outros neandertais, um sinal de compaixão e
cooperação.
Mas talvez a descoberta mais polêmica foi a de
indícios de pólen ao redor do corpo de um deles.
Segundo a equipe de Solecki, isso indicava que
flores haviam sido colocadas junto com o corpo na
hora do enterro - um comportamento muito parecido
com o de humanos modernos.
Um estudo posterior, no entanto, sugeriu que a
presença de pólen na região poderia ser fruto de
contaminação de animais que levaram as flores para
lá. O mistério ainda permanece.
As ideias de Solecki causaram bastante polêmica na
época em que foram publicadas. Isso porque, por
muito tempo, neandertais foram considerados por
cientistas como inferior aos humanos, mais burros e
primitivos - "sub-humanos". Argumentar que a
espécie possuía rituais de luto complexos e relações
sofisticadas ia contra essa ideia dominante. Hoje em
dia, a ciência já trabalha com a hipótese de
neandertais sendo tão inteligentes quantos os Homo
sapiens.
Desde as descobertas de Solecki, a caverna se
tornou um sítio icônico para a arqueologia. Mas
passaram-se décadas até que ela fosse estudada
novamente. Em 2011, o governo curdo da região
convidou arqueólogos britânicos para escavar o
local. A pesquisa iria começar em 2014, mas foi
adiada por conta da ação do grupo terrorista ISIS na
região. Em 2016, os pesquisadores Graeme Barker e
Emma Pomeroy, da Universidade de Cambridge,
finalmente começaram as novas escavações. A
equipe não procurava por mais restos mortais - eles
só pensavam em estudar os sedimentos da caverna.
Mas, nos três anos de escavação, os restos do
Shanizar-Z, como foi apelidado o neandertal,
apareceram de surpresa.
Os restos estavam abaixo do nível em que os
neandertais do século 20 foram encontrados, mas os
pesquisadores não conseguiram determinar ainda se
eles tinham alguma relação ou estavam separados
pelo tempo, possivelmente até por séculos. Agora, a
equipe pretende fazer análises extras em laboratório,
incluindo exames de DNA, para responder essa e
outras dúvidas sobre o Shanizar-Z.
Não se sabe se os neandertais desenvolveram o
hábito de enterrar mortos por si só ou se aprenderam
com os humanos, que já realizam essa prática há,
pelo menos, 100 mil anos, segundo algumas
estimativas. A segunda opção é uma boa
possibilidade, porque sabemos que Homo sapiens e
Homo neanderthalensis já ocuparam os mesmos
locais e até procriaram entre si.