O ano era 1860 e pouco, e a cidade, o Rio de
Janeiro, capital da corte imperial. Caía a tarde. Os
sinos chamavam para as ave-marias. [...]
Nos sobrados, via-se um movimento por trás
das janelas. Eram as mulheres que tinham tomado a
fresca e, agora, iam rezar. Nos oratórios domésticos,
era tempo de acender as velas e puxar um terço. Vez
por outra se ouviam acalantos. As crianças da casa
iam dormir com medo de bichos infernais: o caipora
ou o lobisomem. O choro mais triste de um deles era
sinal de que o papa-figo devorava um malcriado ou
respondão. Nas cozinhas, nos fundos de quintal ou no
último andar dos sobrados, as escravas se atarefavam
em preparar os pratos da ceia. Comentavam que o
negro Manuel caminhava sobre brasas no dia de São
João sem sentir dor. Ou que um espelho rachara: sinal
de morte na casa. As badaladas das torres das igrejas
anunciavam as horas. À meia-noite, ouviam-se nas
pedras da rua ruídos de patas de cavalos, de rodas e
até a voz áspera do boleiro. Era o carro de alma
penada que passava. Quem cruzasse perto da Igreja de
Santa Rita ouviria gemidos, veria almas penadas.
(DEL PRIORE, Mary. Do outro lado. São Paulo: Editora
Planeta, 2014, p. 15-16.)