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Vidas Secas
Graciliano Ramos
Capítulo III – Cadeia (fragmento)
Fabiano tinha ido à feira da cidade comprar
mantimentos. Precisava sal, farinha, feijão e rapaduras.
Sinhá Vitória pedira além disso uma garrafa de
querosene e um corte de chita vermelha. Mas o
querosene de seu Inácio estava misturado com água, e
a chita da amostra era cara demais.
Fabiano percorreu as lojas, escolhendo o pano
regateando um tostão em côvado, receoso de ser
enganado. Andava irresoluto, uma longa desconfiança
dava-lhe gestos oblíquos. A tarde puxou o dinheiro,
meio tentado, e logo se arrependeu, certo de que todos
os caixeiros furtavam no preço e na medida: amarrou
as notas na ponta do lenço, meteu-as na algibeira,
dirigiu-se à bodega de seu Inácio, onde guardara os
picuás.
Aí certificou-se novamente de que o querosene estava
batizado e decidiu beber uma pinga, pois sentia calor.
Seu Inácio trouxe a garrafa de aguardente. Fabiano
virou o copo de um trago, cuspiu, limpou os beiços à
manga, contraiu o rosto. Ia jurar que a cachaça tinha
água. Por que seria que seu Inácio botava água em
tudo? perguntou mentalmente. Animou-se e interrogou
o bodegueiro: - Por que é que vossemecê bota água
em tudo?
Seu Inácio fingiu não ouvir. E Fabiano foi sentar-se na
calçada, resolvido a conversar. O vocabulário dele era
pequeno, mas em horas de comunicabilidade
enriquecia-se com algumas expressões de seu Tomás
da bolandeira. Pobre de seu Tomás. Um homem tão
direito sumir-se como cambembe, andar por este
mundo de trouxa nas costas. Seu Tomás era pessoa de
consideração e votava. Quem diria?
Nesse ponto um soldado amarelo aproximou-se e
bateu familiarmente no ombro de Fabiano: - Como é,
camarada? Vamos jogar um trinta-e-um lá dentro?
Fabiano atentou na farda com respeito e gaguejou,
procurando as palavras de seu Tomás da bolandeira: -
Isto é. Vamos e não vamos. Quer dizer Enfim, contanto,
etc. É conforme.
Levantou-se e caminhou atrás do amarelo, que era
autoridade e mandava. Fabiano sempre havia
obedecido. Tinha muque e substância, mas pensava
pouco, desejava pouco e obedecia.
Atravessaram a bodega, a corredor, desembocaram
numa sala onde vários tipos jogavam cartas em cima
de uma esteira.
(...)
Fabiano, as orelhas ardendo, não se virou. Foi pedir a
seu Inácio os troços que ele havia guardado, vestiu o
gibão, passou as correias dos alforjes no ombro,
ganhou a rua.
Debaixo do jatobá do quadro taramelou com Sinhá Rita
louceira, sem se atrever a voltar para casa. Que
desculpa iria apresentar a Sinhá Vitória? Forjava uma
explicação difícil. Perdera o embrulho da fazenda,
pagara na botica uma garrafada para Sinhá Rita
louceira. Atrapalhava-se tinha imaginação fraca e não
sabia mentir. Nas invenções com que pretendia
justificar-se a figura de Sinhá Rita aparecia sempre, e
isto o desgostava. Arruinaria uma história sem ela, diria
que haviam furtado o cobre da chita. Pois não era? Os
parceiros o tinham pelado no trinta-e-um. Mas não
devia mencionar o jogo. Contaria simplesmente que o
lenço das notas ficara no bolso do gibão e levara
sumiço. Falaria assim: - "Comprei os mantimentos.
Botei o gibão e os alforjes na bodega de seu Inácio.
Encontrei um soldado amarelo" Não, não encontrara
ninguém. Atrapalhava-se de novo. Sentia desejo de
referir-se ao soldado, um conhecido velho, amigo de
infância. A mulher se incharia com a notícia. Talvez não
se inchasse. Era atilada, notaria a pabulagem. Pois
estava acabado. O dinheiro fugira do bolso do gibão, na
venda de seu Inácio. Natural.
(...)
Afinal para que serviam os soldados amarelos? Deu um
pontapé na parede, gritou enfurecido. Para que serviam
os soldados amarelos? Os outros presos remexeram-se, o carcereiro chegou à grade, e Fabiano acalmou-se: - Bem, bem. Não há nada não.
(...)
Fabiano gritou, assustando o bêbedo, os tipos que
abanavam o fogo, o carcereiro e a mulher que se
queixava das pulgas. Tinha aqueles cambões
pendurados ao pescoço. Deveria continuar a arrastálos? Sinhá Vitória dormia mal na cama de varas. Os
meninos eram uns brutos, como o pai. Quando
crescessem, guardariam as reses de um patrão
invisível, seriam pisados, maltratados, machucados por
um soldado amarelo.
- Arreda!
Ramos, G. Vidas Secas. Record. 199ª ed. Edição
original de 1938.