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MULTILINGUISMO
Os povos indígenas sempre conviveram com
situações de multilinguismo. Isso quer dizer que o
número de línguas usadas por um indivíduo pode ser
bastante variado. Há aqueles que falam e entendem
mais de uma língua ou que entendem muitas línguas,
mas só falam uma ou algumas delas.
Assim, não é raro encontrar sociedades ou
indivíduos indígenas em situação de bilinguismo,
trilinguismo ou mesmo multilinguismo.
É possível nos depararmos, numa mesma
aldeia, com indivíduos que só falam a língua
indígena, com outros que só falam a língua
portuguesa e outros ainda que são bilíngues ou
multilíngues. A diferença linguística não é,
geralmente, impedimento para que os povos
indígenas se relacionem e casem entre si, troquem
coisas, façam festas ou tenham aulas juntos. Um bom
exemplo disso se encontra entre os índios da família
linguística tukano, localizados em grande parte ao
longo do rio Uaupés, um dos grandes formadores do
rio Negro, numa extensão que vai da Colômbia ao
Brasil.
Entre esses povos habitantes do rio Negro, os
homens costumam falar de três a cinco línguas, ou
mesmo mais, havendo poliglotas que dominam de
oito a dez idiomas. Além disso, as línguas
representam, para eles, elementos para a constituição
da identidade pessoal. Um homem, por exemplo,
deve falar a mesma língua que seu pai, ou seja,
partilhar com ele o mesmo grupo linguístico. No
entanto, deve se casar com uma mulher que fale uma
língua diferente, ou seja, que pertença a um outro
grupo linguístico.
Os povos tukano são, assim, tipicamente
multilíngues. Eles demonstram como o ser humano
tem capacidade para aprender em diferentes idades e
dominar com perfeição numerosas línguas,
independente do grau de diferença entre elas, e
mantê-las conscientemente bem distintas, apenas com
uma boa motivação social para fazê-lo.
O multilinguismo dos índios do Uaupés não
inclui somente línguas da família tukano. Envolve
também, em muitos casos, idiomas das famílias aruak
e maku, assim como a língua geral amazônica ou
nheengatu, o português e o espanhol.
Às vezes, nesses contextos, uma das línguas
torna-se o meio de comunicação mais usado (o que os
especialistas chamam de língua-franca), passando a
ser utilizada por todos, quando estão juntos, para
superar as barreiras da compreensão. Por exemplo, a
língua tukano, que pertence à família tukano, tem
uma posição social privilegiada entre as demais
línguas orientais dessa família, visto que se converteu
em língua geral ou língua franca da área do Uaupés,
servindo de veículo de comunicação entre falantes de
línguas diferentes. Ela suplantou algumas outras
línguas (completamente, no caso arapaço, ou quase
completamente, no caso tariana).
Há casos em que é o português que funciona
como língua franca. Em algumas regiões da
Amazônia, por exemplo, há situações em que
diferentes povos indígenas e a população ribeirinha
falam o nheengatu, língua geral amazônica, quando
conversam entre si.
Nos primeiros tempos da colonização
portuguesa no Brasil, a língua dos índios tupinambá
(tronco tupi) era falada em uma enorme extensão ao
longo da costa atlântica. Já no século XVI, ela passou
a ser aprendida pelos portugueses, que de início eram
minoria diante da população indígena. Aos poucos, o
uso dessa língua, chamada de brasílica, intensificou-se e generalizou-se de tal forma que passou a ser
falada por quase toda a população que integrava o
sistema colonial brasileiro.
Grande parte dos colonos vinha da Europa sem
mulheres e acabavam tendo filhos com índias, de
modo que essa era a língua materna dos seus filhos.
Além disso, as missões jesuítas incorporaram essa
língua como instrumento de catequização indígena. O
padre José de Anchieta publicou uma gramática, em
1595, intitulada Arte de Gramática da Língua mais
usada na Costa do Brasil. Em 1618, publicou-se o
primeiro catecismo na língua brasílica. Um manuscrito de 1621 contém o dicionário dos jesuítas,
Vocabulário na Língua Brasílica.
A partir da segunda metade do século XVII,
essa língua, já bastante modificada pelo uso corrente
de índios missionados e não-índios, passou a ser
conhecida pelo nome língua geral. Mas é preciso
distinguir duas línguas gerais no Brasil-Colônia: a
paulista e a amazônica. Foi a primeira delas que
deixou fortes marcas no vocabulário popular
brasileiro ainda hoje usado (nomes de coisas, lugares,
animais, alimentos etc.) e que leva muita gente a
imaginar que “a língua dos índios é (apenas) o tupi”.
A língua geral paulista teve sua origem na
língua dos índios tupi de São Vicente e do alto rio
Tietê, a qual diferia um pouco da dos tupinambá. No
século XVII, era falada pelos exploradores dos
sertões conhecidos como bandeirantes. Por
intermédio deles, a língua geral paulista penetrou em
áreas jamais alcançadas pelos índios tupi-guarani,
influenciando a linguagem corriqueira de brasileiros.
Essa segunda língua geral desenvolveu-se
inicialmente no Maranhão e no Pará, a partir do
tupinambá, nos séculos XVII e XVIII. Até o século
XIX, ela foi veículo da catequese e da ação social e
política portuguesa e luso-brasileira. Desde o final do
século XIX, a língua geral amazônica passou a ser
conhecida, também, pelo nome nheengatu (ie’engatú
= língua boa).
Apesar de suas muitas transformações, o
nheengatu continua sendo falado nos dias de hoje,
especialmente na bacia do rio Negro (rios Uaupés e
Içana). Além de ser a língua materna da população
cabocla, mantém o caráter de língua de comunicação
entre índios e não-índios, ou entre índios de diferentes
línguas. Constitui, ainda, um instrumento de
afirmação étnica dos povos que perderam suas
línguas, como os baré, os arapaço e outros.
Fonte: https://pib.socioambiental.org/pt/L%C3%ADnguas.
Adaptado conforme o acordo ortográfico vigente. Acesso em: