TEXTO: A palavra foi feita para dizer
Socorro Acioli, Publicado (01:30 | 15/09/2018)
Quando Vidas Secas foi publicado, na
primeira metade do século XX, os artistas
procuravam encontrar seu lugar depois que os
portões da criação tinham sido escancarados
pelas vanguardas. A partir de então era não só
possível, mas necessário ousar em qualquer
direção: nos temas, na forma e na linguagem.
No Brasil, o modernismo já fincara suas bases
e, quase nos anos quarenta, contava com um
time de autores que a historiografia literária
considerou pertencente ao que chamou de
segunda fase do modernismo.
Quase todos eram regionalistas, essa alcunha
tão mal compreendida e que, muitas vezes,
desperta a reação equivocada de um rótulo que
diminui, mas que fortalece e amplia. Um dos
pulsos de qualquer literatura nacional está
fundamentado justamente na capacidade de
falar do próprio chão e de como homens e
mulheres andaram, marcharam e caíram sobre
ele.
No ano de 1938, foram publicados, entre
outros: Olhai os lírios do campo, de Érico
Veríssimo; Pedra Bonita, de José Lins do
Rego; A estrada do mar, de Jorge Amado;
Cazuza, de Viriato Correia; Porão e Sobrado,
de Lygia Fagundes Telles e Vidas Secas, de Graciliano Ramos; talvez o aniversariante
mais lembrado do grupo e que merece um
olhar cuidadoso e atento para os motivos de
sua permanência no cânone nacional.
Os homens e mulheres do Nordeste foram
protagonistas de mais outras tantas obras dos
contemporâneos de Graciliano Ramos.
Considero que o maior mérito de Vidas Secas,
justamente por ser o mais difícil de alcançar, é
o trabalho com a linguagem e a narração.
Apesar de ser contado por um narrador
onisciente, o uso impecável e invisível do
discurso indireto livre provoca o efeito de uma
polifonia sofisticada.
Aos oitenta anos, não constato sinais de
velhice neste livro. Ainda há muita vida aqui.
É possível falar de Vidas Secas pelos olhos da
história, da sociologia, da literatura, do seu
lugar na trajetória do autor, na linha do tempo
do Brasil, mas escolho outra via para dizer
porque fechei o livro com a certeza de que
essa obra continua forte: há um grande poema
escondido em Vidas Secas, adormecido. Há
música no chocalho das palavras. Barbicacho,
trempe, macambira, suçuarana, baraúna,
taramela, aió, pelame, enxó, marrã, mundéu,
pucumã, jirau, losna, craveiro, arribação - as
aves que cobrem o mundo de penas, expressão
que quase batizou o livro.
Para além de um grande romance, Vidas Secas
é também poesia e música, um bloco de
camadas sobrepostas de sentidos que o tempo
tem tratado de realçar. Poucos octogenários
chegam tão vivos ao seu aniversário. Os
passos desse livro ainda estão vindo pela
estrada nos pés de Fabiano, Sinhá Vitória, os meninos sem nome e os olhos vivos da cadela
chamada Baleia, que também é Palavra.
Graciliano disse que a palavra não foi feita
para enfeitar, brilhar como ouro falso; a
palavra foi feita para dizer.