Por que devemos tratar a solidão como uma questão de
saúde pública?
Estudos mostram aumento de mortalidade ou de riscos à saúde
entre pessoas afetadas por este sentimento
Claudio Lottenberg
2 de março de 2023
Você, leitor, talvez já tenha passado por um dia “daqueles”:
reuniões em série, demandas urgentes e inconciliáveis, telefone
tocando sem parar, múltiplas mensagens em diversos aplicativos,
e-mails a responder, aulas, compromissos familiares e sabe-se lá
mais quanta coisa a requerer sua atenção. Num dia assim, é bem
fácil que já tenha recorrido àquela fantasia, à primeira vista
tranquilizadora, de estar numa praia deserta. Desconectado do
mundo, sem ninguém por perto. Curtindo um estado do que
pareceria a mais plena solidão.
Essa fantasia romântica da solidão só parece positiva
porque a imaginamos como um estado que nos ajudará a ter
sossego, que poderá estimular nossa criatividade, ou coisas
assim. E isso até tem validade – mas é só uma face da moeda. A
outra, nem sempre presente naqueles momentos em que ela
parece ser tudo que queremos, é o seu sentido mais real: um
sentimento de mal-estar ou angústia atribuído à falta de
relacionamento com outras pessoas com quem trocar impressões
e fazer coisas, na definição sugerida pelo psicólogo holandês
René Diekstra, em artigo no site da Organização Mundial de
Saúde.
Pesquisas mostram inclusive que, mesmo sendo um estado
subjetivo, a solidão ganhou proporções de crise de saúde pública
– muito na esteira do que a pandemia, com o isolamento social
necessário para conter a transmissão da Covid-19, provocou. Um
relatório da OMS de 2021 mostrou que a solidão afeta entre 20%
e 34% dos idosos de China, Europa, América Latina e Estados
Unidos. O documento ainda registrou uma associação entre a
solidão sentida por pacientes recém-operados e um risco mais de
óbito nos 30 dias subsequentes (o estudo foi feito com mais de 4
mil idosos, e foi publicado no Jama Surgery (Diário da Associação
Médica Americana)).
A associação Americana do Coração, por sua vez, ainda
verificou num estudo uma associação entre solidão, isolamento
social e aumento (de 30%) nos riscos de AVC (acidente vascular
cerebral) e ataques cardíacos. Jovens são igualmente vítimas da
solidão – outro estudo mostrou uma associação desse estado
com índices mais altos de tabagismo (e nem é preciso descer a
detalhes sobre os efeitos do tabaco na saúde).
Impressiona que, em uma sociedade em que a conexão de
todos com todos seja cada vez mais abrangente, a sensação de
isolamento se faça sentir cada vez mais. O sociólogo Zygmunt
Bauman (1925-2017) disse em entrevista ao “El País” em 2016
que “a solidão é a grande ameaça nesses tempos individualistas”.
Segundo ele, muita gente usa as redes sociais para se fechar em
zonas de conforto, nas quais ouvem apenas as próprias vozes –
e não para dialogar, criar conexões de qualidade com as pessoas.
Podem oferecer uma sensação de pertencimento a alguma
comunidade, mas, diz ele, “são uma armadilha”.
A romantização da ideia de solidão está presente no
pensamento de inúmeros pensadores, escritores, poetas. O
escritor francês Paul Valéry teria dito que solidão e silêncio podem
ser meios de liberdade; Jean-Jacques Rousseau a via como uma
vantagem, de estar sempre na companhia de alguém que sabe
pensar; Arthur Schopenhauer a encarava como uma sorte de
espíritos excepcionais. Tais noções dificultam a compreensão do
fenômeno da solidão e a busca por formas de conviver com ela –
e de ajudar aqueles que a vivem como uma patologia.
Na “Política”, uma de suas muitas obras, o filósofo grego
Aristóteles define o ser humano como um “animal político” – ou
seja, como aquele que vive na pólis, na cidade. É, portanto, um
ser gregário, social, não existe para viver sozinho. Numa
caracterização mais contemporânea – mas basicamente
sinônima –, o neurocientista argentino Facundo Manes disse que
o sentimento da solidão é como um alarme que nos recorda de que somos seres sociais (como o sábio grego já havia entendido
há cerca de 2.500 anos), da mesma forma que a fome nos lembra
de que temos que nos alimentar. O ditado popular diz que o
remédio se diferencia do veneno pela dose; com a solidão talvez
seja a mesma coisa.
Claudio Lottenberg é mestre e doutor em oftalmologia pela Escola Paulista de
Medicina (Unifesp). É presidente do conselho do Hospital Albert Einstein e do
Instituto Coalizão Saúde.
LOTTENBERG, Claudio. Por que devemos tratar a solidão como uma questão de
saúde pública? Forbes Brasil, 02 de março de 2023. Saúde. Disponível em:
https://forbes.com.br/forbessaude/2023/03/claudio-lottenberg-por-que-devemostratar-a-solidao-como-uma-questao-de-saude-publica/. Acesso em: 10 mar. 2023