O afogado mais bonito do mundo
1 Sou antropófago. Devoro livros. Quem me ensinou foi Murilo Mendes: livros são feitos com a carne
e o sangue dos que os escreveram. Os hábitos de
antropófago determinam a maneira como escolho livros. Só leio livros escritos com sangue. Depois que
os devoro, deixam de pertencer ao autor. São meus
porque circulam na minha carne e no meu sangue.
2 É o caso do conto “O Afogado Mais Bonito do
Mundo”, de Gabriel García Márquez. Ele escreveu.
Eu li e devorei. Agora é meu. Eu o reconto.
3 É sobre uma vila de pescadores perdida em nenhum lugar, o enfado misturado com o ar, cada novo
dia já nascendo velho, as mesmas palavras ocas, os
mesmos gestos vazios, os mesmos corpos opacos, a
excitação do amor sendo algo de que ninguém mais
se lembrava...
4 Aconteceu que, num dia como todos os outros,
um menino viu uma forma estranha flutuando longe no mar. E ele gritou. Todos correram. Num lugar
como aquele até uma forma estranha é motivo de
festa. E ali ficaram na praia, olhando, esperando. Até
que o mar, sem pressa, trouxe a coisa e a colocou
na areia, para o desapontamento de todos: era um
homem morto.
5 Todos os homens mortos são parecidos porque
há apenas uma coisa a se fazer com eles: enterrar. E,
naquela vila, o costume era que as mulheres preparassem os mortos para o sepultamento. Assim, carregaram o cadáver para uma casa, as mulheres dentro,
os homens fora. E o silêncio era grande enquanto o
limpavam das algas e liquens, mortalhas verdes do
mar.
6 Mas, repentinamente, uma voz quebrou o silêncio. Uma mulher balbuciou: “Se ele tivesse vivido entre nós, ele teria de ter curvado a cabeça sempre ao
entrar em nossas casas. Ele é muito alto...”.
7 Todas as mulheres, sérias e silenciosas, fizeram
sim com a cabeça.
8 De novo o silêncio foi profundo, até que uma outra voz foi ouvida. Outra mulher... “Fico pensando em
como teria sido a sua voz... Como o sussurro da brisa? Como o trovão das ondas? Será que ele conhecia aquela palavra secreta que, quando pronunciada,
faz com que uma mulher apanhe uma flor e a coloque
no cabelo?” E elas sorriram e olharam umas para as
outras.
9 De novo o silêncio. E, de novo, a voz de outra
mulher... “Essas mãos... Como são grandes! Que será que fizeram? Brincaram com crianças? Navegaram mares? Travaram batalhas? Construíram casas?
Essas mãos: será que elas sabiam deslizar sobre o
rosto de uma mulher, será que elas sabiam abraçar e
acariciar o seu corpo?”
10 Aí todas elas riram que riram, suas faces vermelhas, e se surpreenderam ao perceber que o enterro
estava se transformando numa ressurreição: sonhos
esquecidos, que pensavam mortos, retornavam, cinzas virando fogo, os corpos vivos de novo e os rostos
opacos brilhando com a luz da alegria.
11 Os maridos, de fora, observavam o que estava
acontecendo e ficaram com ciúmes do afogado, ao
perceberem que um morto tinha um poder que eles
mesmos não tinham mais. E pensaram nos sonhos
que nunca haviam tido, nos poemas que nunca haviam escrito, nos mares que nunca tinham navegado,
nas mulheres que nunca haviam desejado.
12 A história termina dizendo que finalmente enterraram o morto. Mas a aldeia nunca mais foi a mesma.
ALVES, R. Sobre como da morte brota a vida. F. de São Paulo.
Cotidiano. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br. Acesso
em: 20 abr. 2023. Adaptado.