História estranha
Um homem vem caminhando por um parque
quando de repente se vê com sete anos de idade.
Está com quarenta, quarenta e poucos. De
repente dá com ele mesmo chutando uma bola
perto de um banco onde está a sua babá fazendo
tricô. Não tem a menor dúvida de que é ele
mesmo. Reconhece a sua própria cara, reconhece
o banco e a babá. Tem uma vaga lembrança
daquela cena. Um dia ele estava jogando bola no
parque quando de repente aproximou-se um
homem e... O homem aproxima-se dele mesmo.
Ajoelha-se, põe as mãos nos seus ombros e olha
nos seus olhos. Seus olhos se enchem de
lágrimas. Sente uma coisa no peito. Que coisa é
a vida. Que coisa pior ainda é o tempo. Como eu
era inocente. Como meus olhos eram limpos. O
homem tenta dizer alguma coisa, mas não
encontra o que dizer. Apenas abraça a si mesmo,
longamente. Depois sai caminhando, chorando,
sem olhar para trás. O garoto fica olhando para a
sua figura que se afasta. Também se reconheceu.
E fica pensando, aborrecido: quando eu tiver
quarenta, quarenta e poucos anos, como eu vou
ser sentimental! Vivendo e... Eu sabia fazer pipa
e hoje não sei mais. Duvido que se hoje pegasse
uma bola de gude conseguisse equilibrá-la na
dobra do dedo indicador sobre a unha do polegar,
quanto mais jogá-la com a precisão que tinha
quando era garoto. Outra coisa: acabo de
procurar no dicionário, pela primeira vez, o
significado da palavra "gude". Quando era garoto
nunca pensei nisso, eu sabia o que era gude. Gude
era gude. Juntando-se as duas mãos de um
determinado jeito, com os polegares para dentro,
e assoprando pelo buraquinho, tirava-se um silvo
bonito que inclusive variava de tom conforme o
posicionamento das mãos. Hoje não sei mais que
jeito é esse. Eu sabia a fórmula de fazer cola
caseira. Algo envolvendo farinha e água e muita
confusão na cozinha, de onde éramos expulsos
sob ameaças. Hoje não sei mais. A gente
começava a contar depois de ver um relâmpago e
o número a que chegasse quando ouvia a
trovoada, multiplicado por outro número, dava a
distância exata do relâmpago. Não me lembro
mais dos números. Ainda no terreno dos sons:
tinha uma folha que a gente dobrava e, se ela
rachasse de um certo jeito, dava um razoável
pistom em miniatura. Nunca mais encontrei a tal
folha. E espremendo-se a mão entre o braço e o
corpo, claro, tinha-se o chamado trombone
axilar, que muito perturbava os mais velhos. Não
consigo mais tirar o mesmo som. … verdade que
não tenho tentado com muito empenho, ainda
mais com o país na situação em que está. Lembro
o orgulho com que consegui, pela primeira vez,
cuspir corretamente pelo espaço adequado entre
os dentes de cima e a ponta da língua de modo
que o cuspe ganhasse distância e pudesse ser
mirado. Com prática, conseguia-se controlar a
trajetória elíptica da cusparada com uma mínima
margem de erro. Era puro instinto. Hoje o mesmo
feito requereria complicados cálculos de
balística, e eu provavelmente só acertaria a frente
da minha camisa. Outra habilidade perdida. Na
verdade, deve-se revisar aquela antiga frase. …
vivendo e desaprendendo. Não falo daquelas
coisas que deixamos de fazer porque não temos
mais as condições físicas e a coragem de
antigamente, como subir em bonde andando _ mesmo porque não há mais bondes andando.
Falo da sabedoria desperdiçada, das artes que nos
abandonaram. Algumas até úteis. Quem nunca
desejou ainda ter o cuspe certeiro de garoto para
acertar em algum alvo contemporâneo, bem no
olho, e depois sair correndo? Eu já.
Luiz Fernando Veríssimo