Questões Militares Comentadas sobre português para efomm

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Q1804067 Português
Direito e avesso

Rachel de Queiroz

    Conheci uma moça que escondia como um crime certa feia cicatriz de queimadura que tinha no corpo. De pequena a mãe lhe ensinara a ocultar aquela marca de fogo e nem sei que impulso de desabafo levou-a a me falar nela; e creio que logo se arrependeu, pois me obrigou a jurar que jamais repetiria a alguém o seu segredo. Se agora o conto é porque a moça é morta e a sua cicatriz já estará em nada, levada com o resto pelas águas de março, que levam tudo.
    Lembrou-me isso ao escutar outra moça, também vaidosa e bonita, que discorria perante várias pessoas a respeito de uma deformação congênita que ela, moça, tem no coração. Falava daquilo com mal disfarçado orgulho, como se ter coração defeituoso fosse uma distinção aristocrática que se ganha de nascença e não está ao alcance de qualquer um.
    E aí saí pensando em como as pessoas são estranhas. Qualquer deformação, por mais mínima, sendo em parte visível do nosso corpo, a gente a combate, a disfarça, oculta como um vício feio. Este senhor, por exemplo, que nos explica, abundantemente, ser vítima de divertículos (excrescências em forma de apêndice que apareceram no seu duodeno), teria o mesmo gosto em gabar-se da anomalia se em lugar dos divertículos tivesse lobinhos pendurados no nariz? Nunca vi ninguém expor com orgulho a sua mão de seis dedos, a sua orelha malformada; mas a má formação interna é marca de originalidade, que se descreve aos outros com evidente orgulho.
    Doença interna só se esconde por medo da morte — isto é, por medo de que, a notícia se espalhando, chegue a morte mais depressa. Não sendo por isso, quem tem um sopro no coração se gaba dele como de falar japonês.
    Parece que o principal impedimento é o estético. Pois se todos gostam de se distinguir da multidão, nem que seja por uma anomalia, fazem ao mesmo tempo questão de que essa anomalia não seja visivelmente deformante. Ter o coração do lado direito é uma glória, mas um braço menor que o outro é uma tragédia. Alguém com os dois olhos límpidos pode gostar de épater uma roda de conversa, explicando que não enxerga coisíssima nenhuma por um daqueles límpidos olhos, e permitirá mesmo que os circunstantes curiosos lhe examinem o olho cego e constatem de perto que realmente não se nota diferença nenhuma com o olho são. Mas tivesse aquela pessoa o olho que não enxerga coalhado pela gota-serena, jamais se referiria ao defeito em público; e, caso o fizesse, por excentricidade de temperamento sarcástico ou masoquista, os circunstantes bem-educados se sentiriam na obrigação de desviar a vista e mudar de assunto.
    Mulheres discutem com prazer seus casos ginecológicos; uma diz abertamente que já não tem um ovário, outra, que o médico lhe diagnosticou um útero infantil. Mas, se ela tivesse um pé infantil, ou seios senis, será que os declararia com a mesma complacência?
    Antigamente havia as doenças secretas, que só se nomeavam em segredo ou sob pseudônimo. De um tísico, por exemplo, se dizia que estava “fraco do peito”; e talvez tal reserva nascesse do medo do contágio, que todo mundo tinha. Mas dos malucos também se dizia que “estavam nervosos” e do câncer ainda hoje se faz mistério — e nem câncer e nem doidice pegam.
    Não somos todos mesmo muito estranhos? Gostamos de ser diferentes — contanto que a diferença não se veja. O bastante para chamar atenção, mas não tanto que pareça feio.

Fonte: O melhor da crônica brasileira, 1/ Ferreira Gullar... [et al.]. 5º ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2007. 

Vocabulário:
épater: impressionar

Com base no Texto, responda à questão que se segue.
Assinale a opção em que o pronome oblíquo sublinhado apresenta um valor possessivo.
Alternativas
Q1695498 Português
Um caso de burro

Machado de Assis

    Quinta-feira à tarde, pouco mais de três horas, vi uma coisa tão interessante, que determinei logo de começar por ela esta crônica. Agora, porém, no momento de pegar na pena, receio achar no leitor menor gosto que eu para um espetáculo, que lhe parecerá vulgar, e porventura torpe. Releve a importância; os gostos não são iguais.
    Entre a grade do jardim da Praça Quinze de Novembro e o lugar onde era o antigo passadiço, ao pé dos trilhos de bondes, estava um burro deitado. O lugar não era próprio para remanso de burros, donde concluí que não estaria deitado, mas caído. Instantes depois, vimos (eu ia coin run amigo), vimos o burro levantar a cabeça e meio corpo. Os ossos furavam-lhe a pele, os olhos meio mortos fechavam-se de quando em quando. O infeliz cabeceava, mais tão frouxamente, que parecia estar próximo do fim.
    Diante do animal havia algum capím espalhado e uma lata com água. Logo, não foi abandonado inteiramente; alguma piedade houve no dono ou quern quer que seja que o deixou na praça, com essa última refeição à vista. Não foi pequena ação. Se o autor dela é homem que leia crônicas, e acaso ler esta, receba daqui um aperto de mão. O burro não comeu do capim, nem bebeu da água; estava já para outros capins e outras águas, em campos mais largos e eternos, Meia dúzia de curiosos tinha parado ao pé do animal. Um deles, menino de dez anos, empunhava uma vara, e se não sentia o desejo de dar com ela na anca do burro para espertá-lo, então eu não sei conhecer meninos, porque ele não estava do lado do pescoço, mas justamente do lado da anca. Dígase a verdade; não o fez - ao menos enquanto ali estive, que foram poucos minutos, Esses poucos minutos, porém, valeram por uma hora ou duas. Se há justiça na Terra valerão por um século, tal foi a descoberta que me pareceu fazer, e aqui deixo recomendada aos estudiosos. 
    O que me pareceu, é que o burro fazia exame de consciência. Indiferente aos curiosos, como ao capim e à água, tinha 110 olhar a expressão dos meditativos. Era um trabalho interior e profundo. Este remoque popular por pensar morreu um burro mostra que o fenômeno foi mal entendido dos que a princípio o viram; o pensamento não é a causa da morte, a morte é que o torna necessário. Quanto à matéria do pensamento, não há dúvidas que é o exame da consciência. Agora, qual foi o exame da consciência daquele burro, é o que presumo ter lido no escasso tempo que ali gastei. Sou outro Champollion, porventura maior; não decifrei palavras escritas,mas ideias íntimas de criatura que não podia exprimi-las verbalmente.
        E diria o burro consigo:
    "Por mais que vasculhe a consciência, não acho pecado que mereça remorso. Não furtei, não menti, não matei, não caluniei, não ofendi nenhuma pessoa. Em toda a minha vida, se dei três coices, foi o mais, isso mesmo antes haver aprendido maneiras de cidade e de saber o destino do verdadeiro burro, que é apanhar e calar. Quando ao zurro, usei dele como linguagem. Ultimamente é que percebi que me não entendiam, e continuei a zurrar por ser costume velho, não com ideia de agravar ninguém. Nunca dei com homem no chão. Quando passei do tílburi ao bonde, houve algumas vezes homem morto ou pisado na rua, mas a prova de que a culpa não era minha, é que nunca segui o cocheiro na fuga; deixava-me estar aguardando autoridade." 
    "Passando à ordem mais elevada de ações, não acho em mim a menor lembrança de haver pensado sequer na perturbação da paz pública. Além de ser a minha índole contrária a arruaças, a própria reflexão me diz que, não havendo nenhuma revolução declarado os direitos do burro, tais direitos não existem. Nenhum golpe de estado foi dado em favor dele; nenhuma coroa os obrigou. Monarquia, democracia, oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em conta os interesses da minha espécie. Qualquer que seja o regime, ronca o pau. O pau é a minha instituição um pouco temperada pela teima que é, ein resumo, o meu único defeito. Quando não teimava, mordia o freio dando assim um bonito exemplo de submissão e conf ormidade. Nunca perguntei por sóis nem chuvas; bastava sentir o freguês no tílburi ou o apito do bonde, para sair logo. Até aqui os males que não fiz; vejamos os bens que pratiquei."
    ''A mais de uma aventura amorosa terei servido, levando depressa o tílburi e o namorado à casa da namorada - ou simplesmente empacando em lugar onde o moço que ia ao bonde podia mirar a moça que estava na janela. Não poucos devedores terei conduzido para longe de um credor importuno. Ensinei filosofia a muita gente, esta filosofia que consiste na gravidade do porte e na quietação dos sentidos. Quando algum homem, desses que chamam patuscas, queria fazer rir os amigos, fui sempre em auxílio deles, deixando que me dessem tapas e punhadas na cara. Em fim...
    Não percebi o resto, e fui andando, não menos alvoroçado que pesaroso. Contente da descoberta, não podia furtar-me à tristeza de ver que um burro tão bom pensador ia morrer. A consideração, porém, de que todos os burros devem ter os mesmos dotes principais, fez-me ver que os que ficavam não seriam menos exemplares do que esse. Por que se não investigará mais profundamente o moral do burro? Da abelha já se escreveu que é superior ao homem, e da formiga também, coletivamente falando, isto é, que as suas instituições políticas são superiores às nossas, mais racionais. Por que não sucederá o mesmo ao burro, que é maior? 
    Sexta-feira, passando pela Praça Quinze de Novembro, achei o animal já morto.
    Dois meninos, parados, contemplavam o cadáver, espetáculo repugnante; mas a infância, corno a ciência, é curiosa sem asco. De tarde já não havia cadáver nem nada. Assim passam os trabalhos deste inundo. Sem exagerar. o mérito do finado, força é dizer que, se ele não inventou a pólvora, também não inventou a dinamite. Já é alguma coisa neste final de século. Requiescat in pace. 
Assinale a opção em que se encontra um período composto por coordenação e por subordinação.
Alternativas
Q1695497 Português
Um caso de burro

Machado de Assis

    Quinta-feira à tarde, pouco mais de três horas, vi uma coisa tão interessante, que determinei logo de começar por ela esta crônica. Agora, porém, no momento de pegar na pena, receio achar no leitor menor gosto que eu para um espetáculo, que lhe parecerá vulgar, e porventura torpe. Releve a importância; os gostos não são iguais.
    Entre a grade do jardim da Praça Quinze de Novembro e o lugar onde era o antigo passadiço, ao pé dos trilhos de bondes, estava um burro deitado. O lugar não era próprio para remanso de burros, donde concluí que não estaria deitado, mas caído. Instantes depois, vimos (eu ia coin run amigo), vimos o burro levantar a cabeça e meio corpo. Os ossos furavam-lhe a pele, os olhos meio mortos fechavam-se de quando em quando. O infeliz cabeceava, mais tão frouxamente, que parecia estar próximo do fim.
    Diante do animal havia algum capím espalhado e uma lata com água. Logo, não foi abandonado inteiramente; alguma piedade houve no dono ou quern quer que seja que o deixou na praça, com essa última refeição à vista. Não foi pequena ação. Se o autor dela é homem que leia crônicas, e acaso ler esta, receba daqui um aperto de mão. O burro não comeu do capim, nem bebeu da água; estava já para outros capins e outras águas, em campos mais largos e eternos, Meia dúzia de curiosos tinha parado ao pé do animal. Um deles, menino de dez anos, empunhava uma vara, e se não sentia o desejo de dar com ela na anca do burro para espertá-lo, então eu não sei conhecer meninos, porque ele não estava do lado do pescoço, mas justamente do lado da anca. Dígase a verdade; não o fez - ao menos enquanto ali estive, que foram poucos minutos, Esses poucos minutos, porém, valeram por uma hora ou duas. Se há justiça na Terra valerão por um século, tal foi a descoberta que me pareceu fazer, e aqui deixo recomendada aos estudiosos. 
    O que me pareceu, é que o burro fazia exame de consciência. Indiferente aos curiosos, como ao capim e à água, tinha 110 olhar a expressão dos meditativos. Era um trabalho interior e profundo. Este remoque popular por pensar morreu um burro mostra que o fenômeno foi mal entendido dos que a princípio o viram; o pensamento não é a causa da morte, a morte é que o torna necessário. Quanto à matéria do pensamento, não há dúvidas que é o exame da consciência. Agora, qual foi o exame da consciência daquele burro, é o que presumo ter lido no escasso tempo que ali gastei. Sou outro Champollion, porventura maior; não decifrei palavras escritas,mas ideias íntimas de criatura que não podia exprimi-las verbalmente.
        E diria o burro consigo:
    "Por mais que vasculhe a consciência, não acho pecado que mereça remorso. Não furtei, não menti, não matei, não caluniei, não ofendi nenhuma pessoa. Em toda a minha vida, se dei três coices, foi o mais, isso mesmo antes haver aprendido maneiras de cidade e de saber o destino do verdadeiro burro, que é apanhar e calar. Quando ao zurro, usei dele como linguagem. Ultimamente é que percebi que me não entendiam, e continuei a zurrar por ser costume velho, não com ideia de agravar ninguém. Nunca dei com homem no chão. Quando passei do tílburi ao bonde, houve algumas vezes homem morto ou pisado na rua, mas a prova de que a culpa não era minha, é que nunca segui o cocheiro na fuga; deixava-me estar aguardando autoridade." 
    "Passando à ordem mais elevada de ações, não acho em mim a menor lembrança de haver pensado sequer na perturbação da paz pública. Além de ser a minha índole contrária a arruaças, a própria reflexão me diz que, não havendo nenhuma revolução declarado os direitos do burro, tais direitos não existem. Nenhum golpe de estado foi dado em favor dele; nenhuma coroa os obrigou. Monarquia, democracia, oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em conta os interesses da minha espécie. Qualquer que seja o regime, ronca o pau. O pau é a minha instituição um pouco temperada pela teima que é, ein resumo, o meu único defeito. Quando não teimava, mordia o freio dando assim um bonito exemplo de submissão e conf ormidade. Nunca perguntei por sóis nem chuvas; bastava sentir o freguês no tílburi ou o apito do bonde, para sair logo. Até aqui os males que não fiz; vejamos os bens que pratiquei."
    ''A mais de uma aventura amorosa terei servido, levando depressa o tílburi e o namorado à casa da namorada - ou simplesmente empacando em lugar onde o moço que ia ao bonde podia mirar a moça que estava na janela. Não poucos devedores terei conduzido para longe de um credor importuno. Ensinei filosofia a muita gente, esta filosofia que consiste na gravidade do porte e na quietação dos sentidos. Quando algum homem, desses que chamam patuscas, queria fazer rir os amigos, fui sempre em auxílio deles, deixando que me dessem tapas e punhadas na cara. Em fim...
    Não percebi o resto, e fui andando, não menos alvoroçado que pesaroso. Contente da descoberta, não podia furtar-me à tristeza de ver que um burro tão bom pensador ia morrer. A consideração, porém, de que todos os burros devem ter os mesmos dotes principais, fez-me ver que os que ficavam não seriam menos exemplares do que esse. Por que se não investigará mais profundamente o moral do burro? Da abelha já se escreveu que é superior ao homem, e da formiga também, coletivamente falando, isto é, que as suas instituições políticas são superiores às nossas, mais racionais. Por que não sucederá o mesmo ao burro, que é maior? 
    Sexta-feira, passando pela Praça Quinze de Novembro, achei o animal já morto.
    Dois meninos, parados, contemplavam o cadáver, espetáculo repugnante; mas a infância, corno a ciência, é curiosa sem asco. De tarde já não havia cadáver nem nada. Assim passam os trabalhos deste inundo. Sem exagerar. o mérito do finado, força é dizer que, se ele não inventou a pólvora, também não inventou a dinamite. Já é alguma coisa neste final de século. Requiescat in pace. 
"Por mais que vasculhe a consciência, não acho pecado que mereça remorso."

Assinale a opção em que a oração reduzida DESFAZ o sentido de oposição do período acima.
Alternativas
Q1695495 Português
Um caso de burro

Machado de Assis

    Quinta-feira à tarde, pouco mais de três horas, vi uma coisa tão interessante, que determinei logo de começar por ela esta crônica. Agora, porém, no momento de pegar na pena, receio achar no leitor menor gosto que eu para um espetáculo, que lhe parecerá vulgar, e porventura torpe. Releve a importância; os gostos não são iguais.
    Entre a grade do jardim da Praça Quinze de Novembro e o lugar onde era o antigo passadiço, ao pé dos trilhos de bondes, estava um burro deitado. O lugar não era próprio para remanso de burros, donde concluí que não estaria deitado, mas caído. Instantes depois, vimos (eu ia coin run amigo), vimos o burro levantar a cabeça e meio corpo. Os ossos furavam-lhe a pele, os olhos meio mortos fechavam-se de quando em quando. O infeliz cabeceava, mais tão frouxamente, que parecia estar próximo do fim.
    Diante do animal havia algum capím espalhado e uma lata com água. Logo, não foi abandonado inteiramente; alguma piedade houve no dono ou quern quer que seja que o deixou na praça, com essa última refeição à vista. Não foi pequena ação. Se o autor dela é homem que leia crônicas, e acaso ler esta, receba daqui um aperto de mão. O burro não comeu do capim, nem bebeu da água; estava já para outros capins e outras águas, em campos mais largos e eternos, Meia dúzia de curiosos tinha parado ao pé do animal. Um deles, menino de dez anos, empunhava uma vara, e se não sentia o desejo de dar com ela na anca do burro para espertá-lo, então eu não sei conhecer meninos, porque ele não estava do lado do pescoço, mas justamente do lado da anca. Dígase a verdade; não o fez - ao menos enquanto ali estive, que foram poucos minutos, Esses poucos minutos, porém, valeram por uma hora ou duas. Se há justiça na Terra valerão por um século, tal foi a descoberta que me pareceu fazer, e aqui deixo recomendada aos estudiosos. 
    O que me pareceu, é que o burro fazia exame de consciência. Indiferente aos curiosos, como ao capim e à água, tinha 110 olhar a expressão dos meditativos. Era um trabalho interior e profundo. Este remoque popular por pensar morreu um burro mostra que o fenômeno foi mal entendido dos que a princípio o viram; o pensamento não é a causa da morte, a morte é que o torna necessário. Quanto à matéria do pensamento, não há dúvidas que é o exame da consciência. Agora, qual foi o exame da consciência daquele burro, é o que presumo ter lido no escasso tempo que ali gastei. Sou outro Champollion, porventura maior; não decifrei palavras escritas,mas ideias íntimas de criatura que não podia exprimi-las verbalmente.
        E diria o burro consigo:
    "Por mais que vasculhe a consciência, não acho pecado que mereça remorso. Não furtei, não menti, não matei, não caluniei, não ofendi nenhuma pessoa. Em toda a minha vida, se dei três coices, foi o mais, isso mesmo antes haver aprendido maneiras de cidade e de saber o destino do verdadeiro burro, que é apanhar e calar. Quando ao zurro, usei dele como linguagem. Ultimamente é que percebi que me não entendiam, e continuei a zurrar por ser costume velho, não com ideia de agravar ninguém. Nunca dei com homem no chão. Quando passei do tílburi ao bonde, houve algumas vezes homem morto ou pisado na rua, mas a prova de que a culpa não era minha, é que nunca segui o cocheiro na fuga; deixava-me estar aguardando autoridade." 
    "Passando à ordem mais elevada de ações, não acho em mim a menor lembrança de haver pensado sequer na perturbação da paz pública. Além de ser a minha índole contrária a arruaças, a própria reflexão me diz que, não havendo nenhuma revolução declarado os direitos do burro, tais direitos não existem. Nenhum golpe de estado foi dado em favor dele; nenhuma coroa os obrigou. Monarquia, democracia, oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em conta os interesses da minha espécie. Qualquer que seja o regime, ronca o pau. O pau é a minha instituição um pouco temperada pela teima que é, ein resumo, o meu único defeito. Quando não teimava, mordia o freio dando assim um bonito exemplo de submissão e conf ormidade. Nunca perguntei por sóis nem chuvas; bastava sentir o freguês no tílburi ou o apito do bonde, para sair logo. Até aqui os males que não fiz; vejamos os bens que pratiquei."
    ''A mais de uma aventura amorosa terei servido, levando depressa o tílburi e o namorado à casa da namorada - ou simplesmente empacando em lugar onde o moço que ia ao bonde podia mirar a moça que estava na janela. Não poucos devedores terei conduzido para longe de um credor importuno. Ensinei filosofia a muita gente, esta filosofia que consiste na gravidade do porte e na quietação dos sentidos. Quando algum homem, desses que chamam patuscas, queria fazer rir os amigos, fui sempre em auxílio deles, deixando que me dessem tapas e punhadas na cara. Em fim...
    Não percebi o resto, e fui andando, não menos alvoroçado que pesaroso. Contente da descoberta, não podia furtar-me à tristeza de ver que um burro tão bom pensador ia morrer. A consideração, porém, de que todos os burros devem ter os mesmos dotes principais, fez-me ver que os que ficavam não seriam menos exemplares do que esse. Por que se não investigará mais profundamente o moral do burro? Da abelha já se escreveu que é superior ao homem, e da formiga também, coletivamente falando, isto é, que as suas instituições políticas são superiores às nossas, mais racionais. Por que não sucederá o mesmo ao burro, que é maior? 
    Sexta-feira, passando pela Praça Quinze de Novembro, achei o animal já morto.
    Dois meninos, parados, contemplavam o cadáver, espetáculo repugnante; mas a infância, corno a ciência, é curiosa sem asco. De tarde já não havia cadáver nem nada. Assim passam os trabalhos deste inundo. Sem exagerar. o mérito do finado, força é dizer que, se ele não inventou a pólvora, também não inventou a dinamite. Já é alguma coisa neste final de século. Requiescat in pace. 
"Releve a importância; os gostos não são iguais."

Fazendo uso de um conectivo para ligar as orações acima, qual destes explicitaria CORRETAMENTE a relação de sentido que se estabelece entre as orações?
Alternativas
Q1695494 Português
Um caso de burro

Machado de Assis

    Quinta-feira à tarde, pouco mais de três horas, vi uma coisa tão interessante, que determinei logo de começar por ela esta crônica. Agora, porém, no momento de pegar na pena, receio achar no leitor menor gosto que eu para um espetáculo, que lhe parecerá vulgar, e porventura torpe. Releve a importância; os gostos não são iguais.
    Entre a grade do jardim da Praça Quinze de Novembro e o lugar onde era o antigo passadiço, ao pé dos trilhos de bondes, estava um burro deitado. O lugar não era próprio para remanso de burros, donde concluí que não estaria deitado, mas caído. Instantes depois, vimos (eu ia coin run amigo), vimos o burro levantar a cabeça e meio corpo. Os ossos furavam-lhe a pele, os olhos meio mortos fechavam-se de quando em quando. O infeliz cabeceava, mais tão frouxamente, que parecia estar próximo do fim.
    Diante do animal havia algum capím espalhado e uma lata com água. Logo, não foi abandonado inteiramente; alguma piedade houve no dono ou quern quer que seja que o deixou na praça, com essa última refeição à vista. Não foi pequena ação. Se o autor dela é homem que leia crônicas, e acaso ler esta, receba daqui um aperto de mão. O burro não comeu do capim, nem bebeu da água; estava já para outros capins e outras águas, em campos mais largos e eternos, Meia dúzia de curiosos tinha parado ao pé do animal. Um deles, menino de dez anos, empunhava uma vara, e se não sentia o desejo de dar com ela na anca do burro para espertá-lo, então eu não sei conhecer meninos, porque ele não estava do lado do pescoço, mas justamente do lado da anca. Dígase a verdade; não o fez - ao menos enquanto ali estive, que foram poucos minutos, Esses poucos minutos, porém, valeram por uma hora ou duas. Se há justiça na Terra valerão por um século, tal foi a descoberta que me pareceu fazer, e aqui deixo recomendada aos estudiosos. 
    O que me pareceu, é que o burro fazia exame de consciência. Indiferente aos curiosos, como ao capim e à água, tinha 110 olhar a expressão dos meditativos. Era um trabalho interior e profundo. Este remoque popular por pensar morreu um burro mostra que o fenômeno foi mal entendido dos que a princípio o viram; o pensamento não é a causa da morte, a morte é que o torna necessário. Quanto à matéria do pensamento, não há dúvidas que é o exame da consciência. Agora, qual foi o exame da consciência daquele burro, é o que presumo ter lido no escasso tempo que ali gastei. Sou outro Champollion, porventura maior; não decifrei palavras escritas,mas ideias íntimas de criatura que não podia exprimi-las verbalmente.
        E diria o burro consigo:
    "Por mais que vasculhe a consciência, não acho pecado que mereça remorso. Não furtei, não menti, não matei, não caluniei, não ofendi nenhuma pessoa. Em toda a minha vida, se dei três coices, foi o mais, isso mesmo antes haver aprendido maneiras de cidade e de saber o destino do verdadeiro burro, que é apanhar e calar. Quando ao zurro, usei dele como linguagem. Ultimamente é que percebi que me não entendiam, e continuei a zurrar por ser costume velho, não com ideia de agravar ninguém. Nunca dei com homem no chão. Quando passei do tílburi ao bonde, houve algumas vezes homem morto ou pisado na rua, mas a prova de que a culpa não era minha, é que nunca segui o cocheiro na fuga; deixava-me estar aguardando autoridade." 
    "Passando à ordem mais elevada de ações, não acho em mim a menor lembrança de haver pensado sequer na perturbação da paz pública. Além de ser a minha índole contrária a arruaças, a própria reflexão me diz que, não havendo nenhuma revolução declarado os direitos do burro, tais direitos não existem. Nenhum golpe de estado foi dado em favor dele; nenhuma coroa os obrigou. Monarquia, democracia, oligarquia, nenhuma forma de governo, teve em conta os interesses da minha espécie. Qualquer que seja o regime, ronca o pau. O pau é a minha instituição um pouco temperada pela teima que é, ein resumo, o meu único defeito. Quando não teimava, mordia o freio dando assim um bonito exemplo de submissão e conf ormidade. Nunca perguntei por sóis nem chuvas; bastava sentir o freguês no tílburi ou o apito do bonde, para sair logo. Até aqui os males que não fiz; vejamos os bens que pratiquei."
    ''A mais de uma aventura amorosa terei servido, levando depressa o tílburi e o namorado à casa da namorada - ou simplesmente empacando em lugar onde o moço que ia ao bonde podia mirar a moça que estava na janela. Não poucos devedores terei conduzido para longe de um credor importuno. Ensinei filosofia a muita gente, esta filosofia que consiste na gravidade do porte e na quietação dos sentidos. Quando algum homem, desses que chamam patuscas, queria fazer rir os amigos, fui sempre em auxílio deles, deixando que me dessem tapas e punhadas na cara. Em fim...
    Não percebi o resto, e fui andando, não menos alvoroçado que pesaroso. Contente da descoberta, não podia furtar-me à tristeza de ver que um burro tão bom pensador ia morrer. A consideração, porém, de que todos os burros devem ter os mesmos dotes principais, fez-me ver que os que ficavam não seriam menos exemplares do que esse. Por que se não investigará mais profundamente o moral do burro? Da abelha já se escreveu que é superior ao homem, e da formiga também, coletivamente falando, isto é, que as suas instituições políticas são superiores às nossas, mais racionais. Por que não sucederá o mesmo ao burro, que é maior? 
    Sexta-feira, passando pela Praça Quinze de Novembro, achei o animal já morto.
    Dois meninos, parados, contemplavam o cadáver, espetáculo repugnante; mas a infância, corno a ciência, é curiosa sem asco. De tarde já não havia cadáver nem nada. Assim passam os trabalhos deste inundo. Sem exagerar. o mérito do finado, força é dizer que, se ele não inventou a pólvora, também não inventou a dinamite. Já é alguma coisa neste final de século. Requiescat in pace. 
Assinale a opção em que o termo sublinhado é um elemento de coesão, sem cumprir função sintática.
Alternativas
Respostas
1: C
2: E
3: C
4: B
5: A