Questões da Prova COPEVE-UFAL - 2012 - MPE-AL - Técnico do Ministério Público - Tecnologia da Informação

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Q864544 Português

                                            INCÊNDIO


      Vi a menina procurar pela mãe, na multidão em frente ao edifício que pegara fogo, e ninguém dizer-lhe onde estava ela. E a menina sabia que a mãe morrera; sabia de vaga notícia, de obscura ciência, como essas coisas se sabem sem necessidade de testemunho. Ela passeava entre populares e fotógrafos o seu rostinho contraído, sua vozinha de choro, sua escassez de palavras. E quando apareceu um bombeiro para dizer-lhe que a  pessoa morta não devia ser sua mãe, todos os sinais tranquilizadores que ele dava eram precisamente sinais confirmativos da perda. E a menina era apenas uma dor humilde, entre outras que latejavam naquele momento em meio à confusão das providências para apagar as chamas e salvar as vidas. 

      Vi a moça dependurar-se à corda, lá no alto, sua saia abrir-se como uma flor redonda, parece mulher ensaiando voo, os cabelos são louros, a moça vem devagar e difícil, os braços tensos afrouxam, ela tomba no vazio. De repente não é mais nada senão uma forma chata sobre a marquise. Raro é ver a morte operar assim à plena luz, sem disfarce nem preparativo de anos e anos. A morte dando demonstração. E a morte estava solta no vão entre dois edifícios, um que se queimava, outro que assumia o papel de porto de salvação. A vida por uma corda, fora do circo, no coração do cotidiano. Uma corda que não chega a rebentar, não é preciso, as mãos da moça é que cederam.

      Vi... Não vi nada disso no local, mas em casa, em preto e branco, repetido pelo televisor que captou a morte, a dor da menina, o material da tragédia no momento em que ela  se fazia. A documentação hoje em dia não acompanha a vida de perto: confunde-se com a vida, e, o que é terrível, nos obriga a todos a ser espectadores de dramas que não podemos remediar, mas cujos horrores temos de contemplar de cara. A menos que desliguemos o aparelho, como o avestruz se recolhe às penas, assistimos de palanque ao incêndio, à inundação, ao terremoto.

      Desses homens e mulheres sacrificados no último incêndio pode dizer-se que morreram antes da hora, não de sua própria morte, mas de outra improvisada e injusta. Arde uma casa e as chamas não matam ninguém. O que mata é a fuga ao incêndio, é a impossibilidade de fugir a ele, nesses edifícios onde tudo foi previsto menos o resguardo da vida de seus moradores. É o despreparo, a omissão, o que-nem-me-importa com o que possa acontecer, porque na maioria dos casos não acontece nada, os incêndios não são diários e metódicos. Vivemos sob o signo da ameaça, e com ele nos habituamos de tal modo que nem o sentimos. Todos esses edifícios, amontoados, colados, como um rebanho denso, toda essa gente dormindo ou trabalhando em seus milhares de escaninhos no ar, sem garantia a não ser o acaso, previsão, sem consciência do perigo, até que um dia a moça loura se agarra desesperadamente a uma corda e depois arria como um balão tascado... É de arrepiar.

(ANDRADE, Carlos Drummond. Auto-retrato e outras crônicas. RJ:Record, 1989)

O uso dos dois pontos em “A documentação hoje em dia não acompanha a vida de perto: confunde-se com a vida” tem função similar na seguinte oração:
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1: B